São Paulo, sábado, 5 de março de 1994
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Ingleses civilizados hoje são apenas estátuas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Há momentos no filme "Vestígios do Dia" em que se teme que de repente o mordomo se imobilize de todo, rijo, e vire estátua de mordomo. Não fosse esse mordomo representado por um ator da qualidade de Anthony Hopkins é provável que isso acontecesse, ficando explícito que ele não passa de uma espécie de idéia platônica da mordomia.
É de imaginar que qualquer Lord Darlington gostaria de ter a seu serviço um tão perfeito servo, mas pode-se também imaginar um lorde que, angustiado, frágil de espírito, o mandasse embora na primeira semana: quem tem a seu serviço um mordomo assim, que lorde precisará ser?
Quem já assistiu a "Vestígios do Dia" e do filme gostou muito, como eu, vai dizer a si mesmo que eu estou me preparando para dizer que, como o autor do romance em que o filme se baseia se chama Kazuo Ishiguro e chegou à Inglaterra com os pais quando já tinha seis anos, é óbvio que não conhece, por dentro, ingleses e mordomos. Mas não é isso que eu acho não.
A Inglaterra, tal como existiu até antes da Segunda Guerra Mundial, recolheu-se a um museu. As figuras básicas de sua civilização tal como essa civilização existiu no seu momento de esplendor são de fato estátuas hoje. (Algumas ainda se mexem bastante mas não atrapalhem meu raciocínio).
Um escritor, qualquer que seja sua nacionalidade, que se dedique a estudar Britânia no seu grande momento, pode produzir uma obra-prima, como me dizem que é o romance de Ishiguro e como certamente é o filme de James Ivory, estrelado, além de Hopkins, por Emma Thompson, e, pasmem, por ninguém menos que o Superman Christopher Reeves, que pediu a Ivory para entrar no filme e que representa um discreto milionário americano que acaba dono de Darlington Hall.
A verdade é que um grande romance sobre Nefertiti ou sobre Helena de Tróia não precisa ser escrito por egípcio ou grego. Norman Mailer tratou de evocar o Egito antigo em "Noites Antigas" e sobre os gregos escrevem sem cessar autores de todas as terras, com a possível exceção dos gregos. O autor de "Vestígios do Dia" terá carregado nas tintas ao pintar o mordomo não por ser japonês mas por que o mordomo virou símbolo e os símbolos ficam ao alcance de qualquer um, ou pelo menos de quem os ame e estude.
O momento do filme em que mais parece doer a condição de ser mordomo é aquele em que, meio de porre, um dos nobres convidados de Lord Darlington resolve, coisa bem de bêbado arrogante, fazer ao mordomo três perguntas sobre política internacional. Se o mordomo sabia ou não as respostas jamais saberemos nós, pois como mordomo interrogado por um grã-fino bêbado, só lhe competia dizer o que diz: Não sei, milorde, não são assuntos do meu conhecimento. E se retira com um respeitoso aceno de cabeça, para que o bêbado diga aos demais lordes de gravata preta por que submeteu o mordomo a passar pelo vexame: Não sabe nada, essa gente, não liga nada, prefere obedecer.
O momento histórico do filme é igualmente simbólico. Muita gente da sociedade mais sofisticada da Inglaterra teve pendores nazistas e nem todos por acharem que o povo sente falta de chicote e espora. O Tratado de Versalhes, que encerrou a guerra de 1914-1918, tratava a Alemanha vencida de forma feroz.
Quem primeiro chamou a atenção dos países aliados para o erro de submeter o adversário à morte lenta, ou a um acesso de fúria, foi Keynes, que era então um jovem assessor econômico da Inglaterra e que escreveu um primeiro livro clássico: "As Consequências Econômicas da Paz". Essas consequências seriam, profetizava Keynes, a nova guerra. Acontece que Keynes, além de grande reformulador do pensamento econômico do seu tempo, era também homem elegante, frequentador dos salões que comandavam moda e idéias em Londres.
E não faltaram os Lord Darlington que, mesmo depois de a Alemanha-vítima de Versalhes se transformar na Alemanha nazista, continuaram a alimentar sonhos de paz e concórdia. Não viram, ou não se deram o trabalho de ver, a entrada em cena de Adolf Hitler, o maior "serial-killer" que a história já viu. Se fôssemos imaginar em termos cinematográficos o aparecimento desse inimigo que Lorde Darlington não enxergou, poderíamos de novo convocar Anthony Hopkins, aquele que nos confronta em "O Silêncio dos Inocentes".
Ascensão do escravo
O mordomo foi a última encarnação do escravo na sociedade inglesa, que foi a primeira a abolir em suas colônias o cativeiro do negro e a forçar a abolição nos países cabeçudos e sonsos como o Brasil. O mordomo mandava em todos os servos da casa. Representava o senhor na copa e cozinha, nas estrebarias, na organização de bailes e banquetes, de caça à raposa. Foi fazendo tanta coisa, assumindo tantas responsabilidades e funções que o amo dele começou a murchar por falta de exercício.
Sérgio Augusto relembrou outro dia na "Revista da Folha" o mais famoso dos mordomos do baixo-império britânico, de nome Jeeves, que cintila nos romances de P.G. Wodehouse. Inteligente, conhecedor profundo da sociedade em que era escravo, Jeeves tinha cem vezes mais inteligência e competência do que seu amo, Bertie Wooster, que positivamente baba na sua gravata de antigo aluno de Eton. Bertie Wooster não existe mais hoje em dia. Jeeves há muito assumiu o governo do país.
J.M. Barrie, que inventou o "Peter Pan", inventou também, numa peça de teatro chamada "O Admirável Crichton", um mordomo tremendo, o dito Crichton. Há um naufrágio, se bem me lembro, de um iate de ricaços. Os sobreviventes vão parar numa ilha deserta e, em breve, quem manda em tudo e em todos é Crichton, simplesmente por que só ele sabe fazer coisas, tais como pescar, caçar e construir com as próprias mãos. No final da peça todos esses que se curvaram a Crichton na ilha deserta, recuperam, de retorno à civilização, suas mordomias. Crichton recupera seu lugar de mordomo.
Sebastião e Siron
O Rio de Janeiro é uma cidade tão festeira que conseguiu para si mesma dois natalícios, comemorados e um tanto confundidos todos os anos. A cidade comemora a data de sua fundação propriamente dita, que ocorreu dia 1º de março de 1565, quando Estácio de Sá fincou na terra o marco de posse, à sombra do Pão de Açúcar: era a garra de Portugal contra a "griffe" dos franceses calvinistas que queriam porque queriam montar bistrô e butique na Maravilhosa.
Acontece que dois anos depois, dia de São Sebastião, 20 de janeiro, Estácio teve ainda que combater os franceses. Foi quando apareceu, lutando do lado luso naturalmente, São Sebastião, como viram todos os combatentes e como registrou mais tarde o historiador Melo Morais pai, que não sabia enquanto viveu mas que teria a honra de ser tio-bisavô de Vinicius, São Sebastião como se sabe era dado a flechas, e os tamoios, aliados dos franceses, acertaram-lhe várias. Uma delas no entanto feriu no rosto Estácio e o matou.
Seja como for, ficou o Rio com dois aniversários, o de 20 de janeiro e o de 1º de março. O fundador teve entre outras glórias a de ficar para sempre, como nome de bairro, no samba imortal que Noel dedicou à Vila Isabel: "Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira". São Sebastião é nosso padroeiro e nosso guia. Já era antimilitarista –desde os tempos do imperador Deocleciano que, não conseguindo acabar com ele a flechadas, mandou exterminá-lo a pauladas.
Além disso, segundo Câmara Cascudo, "os devotos de São Sebastião não morrem de fome, de peste, nem de guerras". Ora, acontece que ultimamente os cariocas têm morrido de fome, de cólera, das lutas entre a P.M. e os traficantes. Acho que o santo não tolera mais sua imagem, sua estátua do largo da Glória. É feia, piegas, velha. Um artista como Siron Franco devia ser convocado para reinterpretar o padroeiro. À guisa de flechas a Petrobrás poderia ceder um punhado dos 3.582 broches de ouro que mandou fazer para brindes e que parece que ficou com vergonha de distribuir. Eis o presente que o Rio deve dar a si mesmo dia 20 de janeiro de 1995.

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