São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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Abolindo a abolição

MOACYR SCLIAR

Quando a escravatura foi abolida no Brasil, em 1988, houve gente que ficou frustrada. Entre estas pessoas estava um rico comerciante paulista, dono de muitos escravos. Mas, garantia, não era só o prejuízo pessoal que o aborrecia. O que de fato o contrariava era o prejuízo que aquela medida (por ele denominada de "insensata") traria ao Brasil. E tinha argumentos para isto. Em primeiro lugar, os de ordem histórica:
"A escravatura sempre existiu e vai existir. Existem aqueles que nasceram para senhores e aqueles que nasceram para escravos".
Em nenhum outro lugar, garantia, isto era mais verdadeiro do que no Brasil:
"Este povo é preguiçoso. Não gosta de trabalhar".
A esposa, uma mulher gentil e caridosa, não gostava de ver o marido falando daquela maneira:
"Os tempos estão mudando, querido. As idéias agora são outras, as pessoas querem ser livres. Mesmo aqueles que você chama de gentalha. E não acho que você deve andar falando essas coisas. Fica muito mal para sua imagem".
O homem não dizia nada, mas magoava-lhe muito aquilo, não ser compreendido pela própria esposa. O que lhe restava? Sonhar.
Sonhava que um dia, na mesma cidade de São Paulo –então transformada numa grande metrópole– alguém, talvez um comerciante como ele, descobriria de novo as virtudes da escravatura. Este escravagista do futuro teria pelo menos –pelo menos!– uma escrava, e a manteria, senão numa senzala, pelo menos num cárcere privado. E com tanta habilidade o faria, que ela se resignaria à prisão. E até convenceria outras a aceitar a condição de escrava.
Mas o seu sonho sempre terminava mal: via o homem se atirar sobre a moça, tentando violentá-la. E isso seria o seu fim. Porque a escravidão mais perfeita, aquela destinada a durar, dispensa, para sempre, a paixão.

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