São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Rangel, um grande mestre

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
O BRASIL PERDE UM ECONOMISTA DE INTELIGÊNCIA PENETRANTE

O Brasil perdeu nesta semana um dos seus maiores economistas. Ignacio Rangel era dotado de uma inteligência penetrante e de uma poderosa imaginação, que lhe permitiram analisar de forma inovadora a economia brasileira e, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento da teoria econômica.
Conheci bem Ignacio Rangel, que foi meu mestre e amigo. Conheci-o desde a segunda metade dos anos 50, quando li seus trabalhos sobre a capacidade ociosa e o desenvolvimento, e assisti a suas conferências no Instituto Superior dos Estudos Brasileiros (Iseb). Depois, em 1963, quando publicou "A Inflação Brasileira", li seu livro em um seminário que então Delfim Netto organizava na Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo.
Delfim e seus assistentes criticavam Rangel pela imprecisão de seus conceitos econômicos, sem ver nele o grande economista autodidata que naquele livro estava formulando uma interpretação inovadora da inflação brasileira. Assim não percebiam o vigoroso economista que, sem conhecer Kalecki, desenvolvia uma macroeconomia com as classes sociais; muito menos viam que Rangel, com aquele livro, descobrira que a oferta de moeda é antes endógena do que exógena, de forma que o Banco Central está longe de ter o poder que se lhe atribui de controlar perfeitamente a oferta de moeda.
Hoje, esta idéia já foi adotada pelos economistas keynesianos e cada vez mais a teoria econômica oficial é obrigada a reconhecer que a economia tem uma dinâmica que lhe é própria, não se submetendo facilmente às diretivas das autoridades econômicas.
Por outro lado, Rangel desenvolveu então a "curva de Rangel", mostrando que a longo prazo, a inflação tem uma relação inversa –ao invés de direta, como pretende a teoria convencional– com o crescimento. Rangel demonstrou que no Brasil, desde os anos 50, quanto maior o crescimento, menor a inflação, e vice-versa.
Ele nunca deu uma explicação totalmente satisfatória para esse fato, mas está claro que isto acontece, principalmente a médio prazo, na medida em que a inflação é um sintoma da crise, é um mecanismo de defesa da economia contra a própria crise. No curto prazo, o excesso de demanda pode provocar inflação, mas, em um prazo mais longo, o que eleva as taxas inflacionárias é a incapacidade da economia de resolver suas próprias contradições.
Tornei-me seu amigo nos anos 70. Com a Revolução de 1964, permaneceu por algum tempo no ostracismo. Até que, em 1972, previu que em breve a economia mundial entraria em uma grande crise, embora naquele momento no Brasil vivêssemos em ritmo de milagre, e no resto do mundo as taxas de crescimento continuassem muito favoráveis. Um ano depois suas previsões se confirmavam.
Rangel sempre pensou na economia como sendo um processo histórico, cíclico e dialético. A idéia de que a economia tem uma dinâmica própria, determinada pelo mercado e pela tecnologia, não podendo ser alterada ao bel-prazer dos formuladores de política econômica, foi sempre um dos traços marcantes de seu pensamento.
A inflação não era para ele a mera consequência de descontrole do gasto público, mas uma forma através da qual a economia se defende da tendência cíclica à capacidade ociosa. Além disso, era o resultado do poder monopolista das grandes empresas vendedoras e compradoras, que aumentavam suas margens e em seguida as mantinham rígidas, mesmo em caso de recessão.
Rangel foi formado na escola estruturalista da Cepal, onde dominava o pensamento de Raul Prebisch, Celso Furtado, Anibal Pinto e Oswaldo Sunkel. Formado em Direito pela Universidade do Maranhão, onde nasceu, seu único estudo formal de economia foi um curso, nos anos 50, na Comissão Econômica para América Latina.
Foi sempre um homem de esquerda. Na sua juventude, foi comunista e marxista. Isto lhe custou a prisão em 1937. Já no Rio de Janeiro, nos anos 40 e 50, tornou-se um keynesiano e um cepalino desenvolvimentista, preocupado com o grande projeto nacional de industrializar o Brasil. Para isto participou da fundação do Instituto Superior dos Estudos Brasileiros.
No instituto, foi o grande economista, enquanto Hélio Jaguaribe era o grande cientista político e Guerreiro Ramos, o grande sociólogo. Reuniu-se um grande grupo de intelectuais nacionalistas –o Grupo de Itatiaia– que formulou de forma coerente a crítica do modelo primário-exportador e da alienação cultural das elites oligárquicas, semi-aristocráticas, ligadas à terra, ao mesmo tempo que propunha a industrialização do país através de uma grande aliança política da classe industrial burguesa nascente, da tecnoburocracia estatal orientada para o desenvolvimento e dos trabalhadores urbanos.
Rangel aceitou esse diagnóstico e essa estratégia, mas acrescentou que a aliança só se tornaria realmente compreensível se a ela fosse acrescentada uma quarta classe, à qual caberia a liderança política da coalizão: a "oligarquia substituidora de importações", existente no Sul e no Nordeste.
Getúlio Vargas –o grande líder político do início da industrialização brasileira– era, na verdade, um estancieiro, um membro da oligarquia substituidora de importações.
Rangel possuía uma concepção original da história brasileira: a teoria da "dualidade básica" da economia e da sociedade no Brasil. Uma dualidade que, através de um processo cíclico de longa duração, levava o sócio menor de uma determinada fase histórica a tornar-se o sócio maior na fase seguinte.
A partir dos anos 30, a oligarquia substituidora de importações tornara-se o sócio maior, enquanto a burguesia industrial assume o papel de sócio menor. Depois da Segunda Guerra Mundial, os industriais assumem o papel de sócios maiores. Entretanto, não soube explicar por que, em 1964, aceitaram tão facilmente a tutela da burocracia civil e militar. Também não soube dizer por que, após o colapso do regime militar, a burguesia industrial não se tornou a classe dirigente do país.
Além de ter publicado muitos livros e de ter sido ativo colaborador da Folha, foi um homem de ação. Foi um dos principais assessores de Getúlio Vargas, especialmente em seu segundo governo, entre 1950 e 1954. Depois, foi economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Juntamente com seu grande amigo, há muito falecido, Jesus Soares Pereira, teve um papel importante na criação das grandes empresas estatais brasileiras, particularmente a Petrobrás e a Eletrobrás.
Seu compromisso fundamental era com o desenvolvimento. Para alcançá-lo, não se deixava levar por ideologismos de direita ou esquerda. Para um país se desenvolver, o fundamental era investir. E investimentos só podiam ser realizados se financiados. Pragmaticamente, buscava saber como seria possível financiar o desenvolvimento.
Em um certo momento, esse financiamento pôde ser feito a partir dos fundos de poupança forçada do Estado. Estimulou essa forma de financiamento. Com a crise do início dos anos 60, essa fonte começou a exaurir-se. Propôs, então, a Octávio Gouvea de Bulhões, então ministro da Fazenda, a correção monetária como uma estratégia alternativa.
Em meados dos anos 70, porém, a correção monetária começava a apresentar efeitos distorcivos. Rangel volta a surpreender a todos ao ser o primeiro a propor a privatização das empresas estatais, que ele ajudara a criar. Em 1978, propôs que, através de uma nova lei de concessão de serviços públicos, o setor privado se responsabilizasse de forma crescente pelos investimentos públicos de infra-estrutura.
Era um homem preocupado com a distribuição de renda. Mas o respeito às tendências endógenas da economia era nele dominante. Por isso, quando nos anos 50 e 60 a reforma agrária foi transformada pela esquerda em condição "sine qua non" do desenvolvimento brasileiro, Rangel discordou. Era favorável à reforma agrária, mas observava que esta, que fora essencial nos países desenvolvidos para criar o mercado interno, não o era no Brasil em 1950, quando a indústria contava com o mercado cativo originado na substituição de importações.
Hoje, quando a substituição de importações há muito se esgotou e a criação de um mercado de massas não é apenas uma questão de humanidade, mas uma condição para a retomada sustentada do desenvolvimento uma vez alcançada a estabilização, talvez Rangel revisasse sua análise e desse à reforma agrária a importância estratégica que há 30 anos não tinha.
Ignacio Rangel parte em um momento de grandes incertezas para o Brasil. Era antes de mais nada um otimista. Que acreditava nas potencialidades do Brasil. A inflação era um sintoma de crise, mas como a crise é cíclica, ela terá de ser superada, na medida em que os recursos existentes nos setores com capacidade ociosa sejam transferidos para os novos setores dinâmicos. Então um novo padrão de financiamento do desenvolvimento afinal se delineará.
Ignacio Rangel não teve tempo de presenciá-lo, mas seus discípulos e amigos, que são muitos, não esquecerão seus ensinamentos e sua inspiração.

Texto Anterior: Papéis no mercado; Irmã mais nova; Com FHC; Mais capital; Novas atividades; Com loteamento; Explicando seu papel; Financiando; Novo endereço; O espanto
Próximo Texto: Permanece a Ufir; Darf em cruzeiros reais; Recolhimento do IR/Fonte; Impostos e a URV; Notas fiscais e a URV; Poupança e a URV
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.