São Paulo, segunda-feira, 7 de março de 1994
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Vergonha nacional

JAIME LERNER

Está em curso no Congresso Nacional uma proposta indecente. Querem aumentar em três meses o mandato dos atuais ocupantes de cargos no Executivo que irão disputar a eleição de outubro. Em outras palavras, querem dar a prefeitos, governadores, secretários de Estado e ministros candidatos a condição de usar e abusar da máquina administrativa em suas campanhas eleitorais por mais 90 dias.
Não é outra a leitura que se deve fazer da proposta que reduz de seis para três meses o prazo de desincompatibilização já nesta eleição. Não se trata apenas de mudar as regras do jogo durante o jogo, o que por si só já é questionável. Fosse uma medida decente, sadia, não haveria problema em se alterar já as normas eleitorais. Mas o que pretendem no caso é acentuar uma das mais detestáveis e nefastas características da política brasileira: a desmedida influência do poder público no curso da eleição.
Revolucionários de ontem, casuístas de hoje. Muitos dos políticos que lutaram contra o pacote que instituiu os senadores biônicos, por exemplo, agora calam-se diante dessa inaceitável articulação. E pior: muitos daqueles que fizeram carreira política gritando contra os casuísmos do regime militar e, depois, contra a prorrogação do mandato de Sarney são os mesmos que agora estimulam a tese da redução da desincompatibilização, beneficiados que serão por ela.
É uma vergonha. A revisão constitucional não pode começar instituindo este crime. Especialmente num momento em que a sociedade espera a depuração da classe política. Antes que se reforme este aspecto da lei eleitoral, há que haver muitas reformas. Por isso, a redução do prazo da desincompatibilização e o direito de reeleição para cargos no Executivo, já praticados em muitos países, não podem valer para esta eleição, ainda que sejam desejáveis no futuro.
Nos países onde vigoram o direito à reeleição e prazos mínimos de desincompatibilização, a lei eleitoral prevê rígidos controles sobre os atos do Executivo, a Justiça dispõe de ritos sumários para coibir abusos e a possibilidade de pressão sobre o funcionalismo público e setores da sociedade por parte do Estado é mínima. Não é o caso brasileiro.
Aqui, é histórico: por mais corrupto e incompetente que seja, um governo garante no mínimo um terço dos votos. Por que? Porque o voto obrigatório favorece a manipulação da máquina administrativa. Porque a pressão sobre o funcionalismo público e principalmente sobre os prefeitos de pequenos municípios acaba se constituindo em verdadeiro rolo compressor. Porque o Estado é hipertrofiado e manipula de forma despudorada a parcela miserável da sociedade, comprando o seu voto. No Brasil, são 32 milhões os miseráveis, para uma população de 150 milhões. No Paraná, pintado na mídia oficial como "O Brasil que dá certo", são 1,8 milhão, numa população de 8 milhões.
Para arrematar o quadro brasileiro, aqui a Justiça tem sido mantida desaparelhada para coibir os abusos. E, ainda por cima, é refém de uma processualística frequentemente arcaica, que permite uma exagerada interposição de recursos. Resultado: grande parte das demandas judiciais envolvendo questões eleitorais arrastam-se indefinidamente pelos cartórios dos tribunais, ao ponto de baterem nos prazos de prescrição ou de mandatos cassados após o seu término.
No Paraná, o governador acusado de cometer a maior fraude eleitoral de todos os tempos vai chegando ao término de seu mandato sem que a Justiça possa produzir a sentença, tal a quantidade de armadilhas processuais à disposição. Na Bahia, "ajudado" por Deus e beneficiado por estas mesmas circunstâncias, ninguém duvide que o deputado João Alves ainda tem alguma possibilidade de driblar a lei.
O exame minucioso destas questões deve obrigatoriamente anteceder qualquer reforma da lei eleitoral. Em contrário, a revisão constitucional começará acobertando interesses inconfessáveis, piorando o que já é péssimo. Uma vergonha nacional.

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