São Paulo, quarta-feira, 9 de março de 1994
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Culto a Debret manifesta vocação escravista

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

As gravuras de Debret estiveram muito em voga nos anos 70. Ainda encontramos resquícios dessa moda em salas de espera de dentista, em prédios de apartamento em Higienópolis.
Essas gravuras ficam naquele lugar que de algum modo precisa ser "decorado", sem que se saiba como. O quadrado vazio onde se espera o elevador; vestíbulos, portarias.
O porteiro nordestino dorme, a cabeça encostada no aparelho de interfone. A seu lado, um abajur estilo Luís 15. Na parede, invariável, uma gravura de Debret relembra e documenta a velha e boa opressão de classe.
Ou então você está esperando o elevador. O espaço é exíguo. Você se despede dos amigos depois do jantar a que foi convidado. Trocam-se fórmulas usuais: foi ótimo, vamos nos encontrar de novo, boa-noite, boa-noite. E lá está, com seus detalhes, a gravura vigilante de Debret, pendurada na parede, parada no tempo.
Nos anos 70, Debret tinha uma função específica. Servia para dar honradez e fumos de tradição a empreendimentos bancários. Lembro-me de um copo para guardar lápis e canetas no escritório, oferecido como brinde a clientes de não sei que Fundo 157; estampara em roda figuras de Debret.
Era também o tempo dos restaurantes baianos de luxo. O "Maria Fulô", por exemplo, com mulatas vestidas a caráter servindo a mesa. Vivia-se, ademais, a moda de ir à Bahia. Primeiros hotéis cinco estrelas e restaurantes pega-trouxa. Xinxins de galinha para paulista em férias.
Foi quando começou o hábito de dar a prédios de apartamento um nome "nobre": edifício Príncipe de Gales, edifício Chenonceaux, edifício Renoir.
Vendo a exposição das aquarelas de Debret na Casa das Rosas (bom nome para um edifício com a qualidade Adolpho Lindemberg-Gomes de Almeida Fernandes), percebi o quanto ainda estamos ligados aos padrões de gosto da década de 70. A exposição é um sucesso. Fala-se sem parar nas aquarelas de Debret.
Não quero comentar sobre sua qualidade artística –acho até que isso não vem muito ao caso. O problema é o de sua pertinência ideológica; das reações que essas caprichadas estampas do Brasil em 1820 despertam hoje no público.
Arrisco uma teoria sobre a moda Debret nos anos 70. A época era de milagre econômico. De americanização completa da cultura. De "modernização", como se diz. Embratel, Jornal Nacional, boom na Bolsa de Valores, leilões de arte, turismo interno, Transamazônica, país que vai pra frente.
As gravuras de Debret serviram, então, como reserva de tradicionalidade cultural. Serviram para enunciar o fato de que, dinâmico e progressista, o Brasil ainda era "o Brasil". Que, num mundo de enriquecimento fácil, de cultura de massa, de novelas e jornais nacionais, de discotecas e tropicalismos, restava um peso colonial e puro, imóvel e preciso, no país.
Os desenhos de Debret tiveram, assim, uma função reacionária. Documentos de uma época escravista, bárbara, odiosa, travestiram-se de brasilidade, embelezaram a ditadura Médici, estilizaram a raça dos porteiros e aristocratizaram os Malufs, atribuindo-lhes um passado "brasileiro" paradoxalmente feito de Cochranes, de Guinles, de Bozzano-Simonsens.
Último alento da plutocracia carioca, antes do prestígio dos bicheiros, e primeiro toque do comercialismo baianizante –Jorge Amado, Mãe Menininha, Caetano, Gal–, Debret foi consumido na classe média-alta paulista como artigo nobilitante e tradicionalóide. Mulatas desenhadas com suas ventas, carapinhas e fedores entraram pelo elevador social dos prédios ascendentes da Mooca, dos prédios pretensiosos de Moema, dos prédios antigos de Higienópolis.
As coisas não mudaram muito desde os anos 70.
O "frisson" causado pela exposição de Debret na Casa das Rosas é ideologicamente suspeito.
Aquelas cenas do Brasil de 1820 deviam nos envergonhar.
Um francês, representante da "civilização", retrata sem comentários os costumes do Rio de Janeiro escravocrata. Chega a "limpar" as cenas; o desenho preciso não denota a confusão urbana, o subdesenvolvimento geral, a sujeira das ruas. Debret perfila os negros e os senhores como se fossem todos índios. É respeitoso da "cultural" local. Não se nota, em suas delicadas aquarelas, nenhuma efusão tropicalizante, nenhum fator de caos, nenhuma tensão, nenhuma utopia.
"As coisas eram assim". "O mundo era assim". "O Brasil era assim". Debret retrata o Brasil com a minúcia do "assim". E até hoje, vamos ver Debret à procura do "assim". Já se vendiam pães-de-ló, já se fabricava garapa, já existia o Outeiro da Glória: os visitantes da exposição procuram, a todo custo, reconhecer o Brasil –essa entidade mítica chamada Brasil– nas aquarelas apresentadas.
O que mais chama a atenção nos quadros de Debret é sua imobilidade. O negro carregando lenha, o negro espremendo cana, são estampas antropológicas, imutáveis. Tudo se congela no desenho.
A precisão de Debret mereceria o qualificativo de sádica. A cena do castigo de um escravo se imobiliza num gesto eterno e ritual, gravado imparcialmente no papel.
Feitas de frieza colorida, de assepsia voyeurista, de imobilidade e falta de alegria, as aquarelas de Debret são encantatórias sem encanto.
Fascinam como cobras. São cruéis e exatas.
O interesse despertado pela exposição na Casa das Rosas é politicamente incorreto. Significa o desejo de traçar linhas de continuidade entre o Brasil escravocrata e o Brasil de hoje. Essas linhas de continuidade existem, são reais. Mas, embelezados no buril e no pincel de Debret, passam a representar o tradicionalismo adverbial do "assim". É assim, era assim, olhamos cada estampa com um perfil de assentimento, querendo reconhecer-nos, querendo o Brasil, o "nosso" Brasil.
País em que os negros "conhecem o seu lugar", onde cada atividade –barbeiro, vendedor de frangos, estivador– tem um pitoresco próprio, local, etnográfico.
Classicista, sereno, indiferente, Debret entregou às gerações posteriores um mito de brasilidade, de absurdo aceitável, de opressão admitida. Usa-se esse mito. Babamos o Brasil nessas aquarelas. Aquarelas do Brasil: a única atitude certa, frente ao quadro de barbárie imóvel que ressalta das obras de Debret, é odiar essa imobilidade, esses caprichos de desenhista, esse aquarelismo.
Mas não. Como nos anos 70, e nada mudou desde essa época, a exposição na Casa das Rosas solicita a complacência nativista e sádica, a aquisição fácil de brancura aristocrática, o violento "assim" da burguesia paulistana. Olha aí, como os negros e mulatos eram pouco ameaçadores. Como eram disciplinados. Como era esse o Brasil. No olhar de cada pessoa encantada com Debret, há um brilho escravocrata.

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