São Paulo, quarta-feira, 9 de março de 1994
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Russell troca barroquismo por didatismo

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ken Russell, 67, já havia estilizado a história em suas biografias cinematográficas barrocas de grandes compositores (Mahler, Tchaikovsky, Liszt) ou mesmo na adaptação delirante de "The Devils of Loudon", de Aldous Huxley ("Os Demônios").
Em "Os Prisioneiros da Honra" ("Prisoners of Honor", 1991), o diretor inglês faz uma nova estilização histórica em torno de um personagem (o caso Dreyfus). Só que, desta vez, Russell abandonou o barroquismo em nome de um didatismo igualmente estilizado e esquemático.
Produzido para televisão pelo canal a cabo HBO, "Prisioneiros da Honra" tem o objetivo de contar o caso Dreyfus para quem não conhece a história, servindo ao mesmo tempo como denúncia insistente do anti-semitismo.
Após 15 anos servindo ao exército francês, o capitão Dreyfus é condenado, em 1895, como espião, à prisão perpétua na Ilha do Diabo (Guiana Francesa). Acusado de ter oferecido informações secretas por dinheiro a um oficial do exército alemão, Dreyfus foi na realidade vítima de uma injustiça (o espião era outro oficial francês) e serviu de bode expiatório para o anti-semitismo na França.
O didatismo a que se propõe o filme já se revela na forma da narrativa em flashback, a história narrada por dois sujeitos em Londres, em 1923, tentando compreender as razões da injustiça. O personagem principal da história não é, portanto, Dreyfus, mas o coronel Picquart (Richard Dreyfuss), que enfrentou o comando do exército francês (que alegava não poder reconhecer o erro para não perder a moral e o prestígio diante de uma guerra "iminente" com a Alemanha) e o anti-semitismo em nome da verdade e da justiça.
O estranho é que Russell nunca foi um cineasta realista em sua visão da história. Na verdade, o didatismo de "Prisioneiros da Honra" também está muito longe de uma ótica realista. Os atores e personagens se comportam como soldadinhos de chumbo, figurinhas saídas diretamente de ilustrações de livros escolares e colocadas em movimento. Russell continua estilizando até o limite das possibilidades. Só que o que era barroquismo se tornou esquematismo.
Picquart é apresentado como um herói, um homem de fibra e de honra apesar de seus preconceitos anti-semitas. Mas é curioso que um filme que pretende ir contra o anti-semitismo de uma forma tão enfática se preocupe bem menos com outros aspectos racistas ocidentais. É um efeito do didatismo estilizado.
A certa altura, quando Picquart é enviado ao norte da África, porque está criando muitos problemas para o exército na França, e quase morre, um general em Paris diz que, apesar de tudo, Picquart é um oficial indispensável para o país e não o deixará morrer na Líbia "por causa de disputas entre um bando de nativos".
Não há qualquer objetivo de denúncia nessa cena rápida, e também não é próprio de Russell querer documentar com realismo o espírito da época. A frase racista, perdida no meio do filme, tem apenas a finalidade de exaltar a importância do oficial francês para o entendimento desse espectador que não conhece história e a quem é dirigido o filme. Embora não seja um lapso terrível, a cena é emblemática da ótica desse tipo de cinema esquemático, no fundo mais preocupado com estilo que com história.

Vídeo: Prisioneiros da Honra
Diretor: Ken Russell
Elenco: Richard Dreyfuss, Oliver Reed, Peter Firth
Distribuidora: Vídeo Interamericana

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