São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Ficção é mais eficaz que documentário'

ELISABETH SCHEMLA
DA "LE NOUVEL OBSERVATEUR"

"Ficção é mais eficaz que documentário"
Steven Spielberg prefere a recriação dramática porque permite abordar o Holocausto pelo ângulo da emoção
Nesta entrevista dada ao semanário francês, Steven Spielberg se defende das acusações de ter transformado o Holocausto em um grande espetáculo. Conta também por que se interessou por Oskar Schindler, que o levou a retomar suas ligações com o judaísmo.
*
Pergunta - No ano passado, em Cracóvia, você filmava "A Lista de Schindler" durante o dia e à noite concluía a montagem de "Parque dos Dinossauros". Como o cineasta do fantástico de repente deu lugar ao cineasta do Holocausto?
Spielberg - Eu li "Schindler's List", de Keneally, quando foi publicado em 1982. Era a história mais incrível que eu já vira. Aquele relato extremamente rico e documentado, semelhante a uma grande reportagem, sem qualquer tom melodramático, me comoveu mais do que qualquer outra coisa que eu já havia visto ou lido. Mas me recusei a fazer o filme na época. Eu não estava pronto. Naquela época, queria fugir da vida e criava meus próprios mundos no cinema. Eu havia decidido levar as pessoas para fora da realidade, nos meus universos inventados, como em "Tubarão ou "Indiana Jones". Eu era imaturo demais para a "Lista".
Pergunta - Então, o que o trouxe à maturidade?
Spielberg - O nascimento de meu filho, em 1985. Isso me transformou para sempre, pois finalmente eu criei, ou melhor dizendo co-criei, um ser humano. Foi um milagre em minha vida, não direi mais. De repente eu quis que houvesse um futuro, isto é, raízes. Quando ele tinha dois ou três anos, procurei livros infantis que contassem nossa história. Não encontrei, e disse a mim mesmo: "Meu Deus! Será que esses livros não existem nos EUA?". Quanto a mim, comecei a me sentir sufocado no mundo de fantasia que era o meu. Apesar de ainda ter permanecido alguns anos nesse mundo, já não o suportava mais. Antes do meu filho nascer, eu vivia nos filmes; depois, comecei a viver na vida. Antes, fazia cinema –depois, fui progressivamente me transformando num realista. Eu percebi que precisava imperiosamente deixar um legado, uma obra. Foi somente nesse momento que me tornei maduro para poder abordar o Holocausto, para fazer "A Lista de Schindler", que em minha opinão, ao lado de "E.T.", é meu único filme digno desse juramento pessoal.
Pergunta - Vamos aprofundar essa sentença: "Eu que até então não queria ser judeu".
Spielberg - Meus avós, originários da Áustria e da Rússia, chegaram aos Estados Unidos em 1912, fugindo dos pogroms (massacres de judeus). Meus pais nasceram em Cincinnatti e eu também. Fui criado numa família ortodoxa, religiosa. Vivíamos no bairro judeu da cidade, eu ia à sinagoga todos os sábados.
Depois meu pai deu certo em sua profissão e viveu a aventura americana. Nos mudamos para Nova Jersey. A partir desse momento eu cresci entre não-judeus.
Pergunta - Quando você era jovem, deve ter ouvido falar da Shoah (o Holocausto, em hebraico).
Spielberg - Não, não se falava nisso. Meus pais jamais utilizavam essa palavra, nem a palavra Holocausto. Eles só mencionavam, enigmaticamente, "a época em que os judeus eram mortos".
Pergunta - O que você leu ou assistiu mais tarde que te alimentou para poder dirigir "A Lista de Schindler"?
Spielberg - Eu li Elie Wiesel, Primo Levi, e tenho as nove horas de "Shoah", de Lanzmann, que já assisti três vezes. A meu ver é um documento muito importante, uma contribuição essencial e definitiva à memória dos sobreviventes.
Pergunta - Essas obras têm em comum o fato de serem elas mesmas testemunhos, ou de se basearam exclusivamente em testemunhos. Você se perguntou se teria moralmente o direito de fazer um espetáculo sobre o Holocausto?
Spielberg - Respeito aqueles que se sentem chocados pelo que fiz porque na opinião deles o Shoah não pode dar lugar a um filme ou porque é indizível. Mas isso pode levar a que não se faça mais nada sobre essa tragédia, e isso me parece um crime ainda mais grave do que aquele que eu cometo. Acredito que o cinema, através da emoção, realmente torna tudo mais abordável do que um documentário. A diferença entre "Shoah", de Lanzmann, e "A Lista de Schindler" é tudo aquilo que diferencia a recriação dramática da história através de uma história específica de um relato da memória. Por que uma e não a outra?
Pergunta - Mas o que você queria fazer quando filmou "A Lista de Schindler"?
Spielberg - Eu queria justamente que as pessoas vissem o Holocausto. Mas se fosse para relatar mais uma vez o crime contra a humanidade, não haveria nada de diferente. Eu queria abordar o tema por uma via inédita, desde um ponto de vista diferente. E Oskar Schindler me dava essa possibilidade. Esse personagem foi um paradoxo vivo. Ele estava inteiramente mergulhado no sistema nazista, fazia o mercado negro e, em sua fábrica, utilizava judeus como escravos. Mas ao mesmo tempo era um homem bom, e salvou cerca de 1.200 judeus arriscando sua própria vida. É fascinante!
Pergunta - Apesar dessa história ser verídica, você é criticado por ter escolhido um nazista justo.
Spielberg - A verdade é que houve pessoas boas durante todos aqueles anos, que salvaram judeus. No filme, tentei mostrar os diferentes pontos de vista, inclusive os dos alemães, sabendo que a lógica e a densidade psicológica das vítimas são uma conquista para o mundo.
Pergunta - Foi a preocupação com aquilo que você sem dúvida qualificará de "verdade" que te levou a achar, impensadamente, que poderia rodar teu filme em Auschwitz mesmo?
Spielberg - A tragédia aconteceu ali, e eu não via como recriar o campo de extermínio e o gueto de Cracóvia em Universal City, Los Angeles, Califórnia. Contrariamente a meus outros filmes, eu queria estar próximo da realidade, fazer parte dela. Eu havia pedido autorização para filmar ao governo polonês, que a havia concedido. Depois o Congresso Judaico Mundial me explicou que Auschwitz é um lugar sagrado, um cemitério aberto onde os mortos, suas cinzas saídas das chaminés das câmaras de gás, estão profundamente misturadas com a terra.
Pergunta - Durante as filmagens às quais os sobreviventes assistiram, você disse que às vezes tinha a odiosa impressão de estar na pele de um nazista.
Spielberg - É verdade, porque eu dirigia cenas do Shoah. Mas depois de ter feito esse filme, continuei sem entender como aquilo tudo pode ter acontecido. Essa loucura nazista, o delírio daquela máquina implacável, são tão abstratos para mim quanto um quadro de Jackson Pollock.
Pergunta - Por que Hollywood foi contra o filme?
Spielberg - Pelas razões éticas que você mencionou! Mas também porque Hollywood é conformista e sempre achou que o Holocausto não lhe traria um dólar. Acredito, sem falsa modéstia, que sou o único cineasta do mundo que poderia ter imposto isso. Mas não vou ficar com o lucro do filme: vou reverter tudo para obras judaicas.
Pergunta - Você já disse várias vezes que não tem estilo pessoal e que muitos de seus filmes foram feitos para convir ao público, "exatamente como se frita um hambúrguer a pedido". E depois de "Schindler"?
Spielberg - Acho que jamais vou renunciar inteiramente aos contos de fada, porque também fazem parte de mim. Mas eu coloquei demais de mim em "Schindler" para que esta experiência e este filme não mudassem profundamente minha maneira de fazer cinema. Não sei mais do que isso por enquanto. Vou tirar um ano de férias e vou continuar a me aproximar de meu judaísmo.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Nova safra enriquece filmografia do neonazismo
Próximo Texto: "Filme de Spielberg é bom", diz viúva
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.