São Paulo, sábado, 12 de março de 1994
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Amado conta história "sem compromisso"

Novo livro do escritor baiano chega quarta às livrarias

MARCO CHIARETTI
DA REPORTAGEM LOCAL

"A Descoberta da América pelos Turcos", novo livro de Jorge Amado, chega na próxima quarta às livrarias, editado pela Record. O escritor baiano, eterno candidato ao Nobel aos 82 anos, fez um "romancinho" para contar uma história sem compromissos: a vida de Jamil, Raduan e Adma na Bahia do cacau e dos coronéis. Nesta entrevista à Folha, por telefone, de sua casa em Salvador, ele fala do livro (que saiu na Europa em 92), dos "turcos", como eram chamados os imigrantes do Império Otomano, das putas e seus amores, dos Amado, e de seu romance inacabado, "Bóris, o Vermelho", uma história que o persegue há dez anos.
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Folha - Do que trata seu novo livro? Da verdade e das versões sobre ela?
Jorge Amado - É possível que você tenha razão, mas não cabe a mim dizer isso. Você leu e achou isso. O que me agrada nesta história, neste romancinho, é o seu descompromisso. Fiz uma coisa que eu tinha vontade de fazer há anos: contar uma história para aqueles que a queiram ler, sem nenhum outro compromisso, ideológico, político, social. Eu queria só que o leitor ficasse contente, gostasse de ler uma coisa que aconteceu.
Folha - Como você consegue escrever sobre amor e sexo com tanta vivacidade?
Amado - Para mim o sexo sempre foi uma festa. Eu fui criado, é uma maneira de dizer, em casa de puta, nos anos 20. Era rapazinho: comecei muito cedo minha experiência sexual. Putas daquele tempo, e de província. Maternalíssimas. Hoje eu recebi um presente, um doce delicioso, doce de banana em rodinhas. Este doce chama-se doce de puta, porque em toda casa de puta daquele tempo tinha doce de rodinha, e um licor de pitanga, de jenipapo, de maracujá, disso ou daquilo, feito pelas freiras do convento das carmelitas. Você entrava, e não era uma coisa de você ir pro quarto com a rapariga. Elas ficavam ali e faziam sala. Serviam o licor das freiras, como elas diziam, e serviam o doce de banana de rodinhas. Daí chamarem de doce de puta.
Folha - Aí começou...
Amado - É. Meus primeiros amores foram aí, não como freguês, mas como xodó de raparigas. Quando elas terminavam de fazer a vida, você ia pra ficar com elas, dormir, e era a coisa mais terna, mais doce. Era uma festa, um momento em que elas já não eram profissionais, eram moças. Aí eu aprendi que o amor sempre era uma festa, que a cama era uma festa. Coisa que eu continuo achando até hoje. Aos 82 anos, a festa é muito diferente do que era aos 20, aos 15, ou aos 30, aos 40, aos 50, mesmo aos 60: é uma festa que é feita da experiência, do conhecimento, do refinamento.
Folha - E na época?
Amado - Eu chegava à meia-noite, meia-noite e meia, quando elas estavam já descansando. Passava semana em casa de puta, vestido com as camisolas delas. Era uma coisa que hoje já não existe, hoje existe o motel. Naquele tempo eram os "castelos": veja como é bonito esse nome. Foi onde eu aprendi sobre a cama.
Folha - E depois?
Amado - Mais tarde, certos refinamentos me foram ensinados já por senhoras casadas, distintas, diplomatas, mulheres de diplomatas, mulheres de banqueiros. Elas me ensinaram os refinamentos, porque as putas, não só não eram tão refinadas, como se você fosse propor a uma puta, brasileira, baiana, daquele tempo, comer o cu dela, ela te expulsava. Eram raríssimas aquelas que te chupavam o pau. Eram as francesas que o faziam, que eram a casta sexualmente superior, porque faziam de tudo. Estamos falando dos anos 20, quando comecei minha frequentação, aos 12, 13 anos.
Folha - E na "Descoberta"?
Amado - Nesse livro de novo eu falo muito de raparigas, porque eu convivi muito com elas. Uma vez um crítico literário, tentando me esculhambar, disse que eu era uma "romancista de putas e vagabundos". Nunca me senti tão honrado e passei a usar isso em toda a parte. Nos meus livros, o amor nunca degradou ninguém, nunca foi fonte de tristeza e de degradação. Ele é sempre limpo e alegre, mesmo quando é feito com a Adma.
Folha - E os turcos?
Amado - Na Bahia tinha muito sírio, muito libanês. A região em que eu nasci, a região do cacau, a região grapiúna, foi colonizada por sergipanos, como o meu pai, que foi um dos coronéis do cacau. E havia os árabes, os turcos. A quantidade de árabes era enorme. Eles tiveram uma influência muito grande na formação da civilização do cacau. Existe um livro de um crítico literário importante, acho que é sírio, sobre a influência árabe na literatura do sr. fulano de tal, quer dizer, na minha. Aí eles me honram muito porque me consideram árabe.
Folha - E o que você é?
Amado - Em realidade eu sou um brasileiro com milhares de sangues misturados, sangue índio, sangue negro, sangue judeu, tudo misturado.
Folha - Tem cristão novo?
Amado - Deve ter tido. Uma vez Gilberto Amado me mostrou um mapa do tempo da conquista holandesa, sobre a localização das famílias holandesas vindas com Nassau que não regressaram para a Holanda. E Gilberto me mostrou orgulhosíssimo: "Olha aqui os Amado". "Somos holandeses", ele dizia, mulato pra burro. Mas, como você sabe, muitos dos que vieram com Nassau eram judeus, eram cristãos-novos fugidos de Portugal e da Espanha. Há Amados pra burro na Espanha, com variantes na América. Há um Jorge Amado poeta no Panamá. Tem Amados às pampas no Oriente, de onde eles devem ter vindo: ou judeus sefaradi, que eu acho que eram, ou árabes. Se espalharam pela Península Ibérica, foram para a Holanda, vieram pro Brasil e aqui se misturaram. Minha avó materna era uma índia, minha bisavó materna foi pega no mato por um português, caçador, que lhe fez não sei quantos filhos. Minha mãe era uma pequena índia.
Folha - Em que você está trabalhando agora?
Amado – Agora eu não estou fazendo nada porque aqui no Brasil não posso fazer nada. Tenho um terço mais ou menos da história de "Bóris, o Vermelho" pronto, uma história na qual eu venho labutando há dez, 11 anos, desde 83. Esta idéia me persegue e não consigo acabá-la. No fim de maio, vou a Paris, para trabalhar junho e julho nela. Vamos ver se concluo este romance ou se sou mais uma vez derrotado.
Folha - Quem é Bóris?
Amado - Bóris é um jovem brasileiro, de 18, 19 anos, um mulato sarará. Daí o "Vermelho". Chama-se Bóris porque sua mãe, que era costureira e leitora de folhetins da época do czar, achou o nome lindo. De Antonio, bastava o marido. Ele assume o nome, que lhe traz as maiores confusões. A trama se passa na década de 70, no governo Médici. Vive entre dois pólos: o movimento hippie e o movimento dos estudantes contra a ditadura. Gosta muito de mulher, mas gosta sem muita promiscuidade, e fuma sua maconhazinha de vez em quando. Mas não é nem hippie nem ativista. É um jovem brasileiro que vive sem trabalho fixo, largou os estudos, tem uma vida sexual muito ativa. Depois vai servir o Exército. Até aí eu vou. Mais eu não sei. Mas sucedem coisas que fazem com que ele seja considerado um inimigo da sociedade, enviado pela Rússia, passado por Cuba, e ele não sabe nada disso. Por outro lado, ele passa a ser considerado um herói do povo, um herói do proletariado. A história deve sair no ano que vem, se eu a fizer. Não garanto.

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