São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Julián Ríos e o livro-mundo

MILTON HATOUM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os leitores de Jorge Luis Borges admiram também suas declarações irônicas. Devo esta anedota a Davi Arrigucci Jr. Certa vez um jornalista perguntou a Jorge Luis Borges o que ele achava do escritor espanhol Benito Perez Galdós. Borges, no seu habitual tom de ironia, respendeu: "Meus sinceros pêsames." Na opinião do grande escritor argentino, faltava à Espanha um grande escritor do século 19. Borges, cego desde 1955, não pôde ler os melhores escritores espanhóis da segunda metade deste século: Luiz Martim Santos, Juan Goytisolo e Julián Ríos. Galego de Vigo, Ríos é considerado por Carlos Fuentes o mais inventivo e criativo escritor de língua espanhola.
Fuentes não exagera. Ríos, além de ser um escritor prolixo, é um adepto caloroso do pluralismo cultural e um cultor de neologismos. Em cada frase que escreve há um "calembour"; qualquer um de seus livros é uma festa de chistes e de palavras em que participam "o idioma espanhol e seus coadjuvantes". Sua carreira literária começou em parceria com Octavio Paz. Deste dueto nasceu o livro "Solo a Dos Voces" (1973), publicado no Brasil em 1987 (Ríos desconhecia a tradução brasileira).
Em 1983 publicou o romance "Larva", ponto de partida de um "work in progress" que já deu os livros "Poundemonium" (1989) e "Álbum de Babel" (1993). O ciclo romanesco de "Larva" ainda resultará em dois livros que ele está preparando, "Belles Lettres" e "Auto de Fenix". Joyceano até a medula, Julián Ríos também concilia o ensaio com a ficção no livro "Ulysses Ilustrado", feito em colaboração com o artista plástico Eduardo Arroyo.
Se por um lado ele cultiva a tradição literária européia, por outro ele admira e homenageia os escritores mais inventivos da América Latina: Julio Cortázar, Lezama Lima, Machado de Assis e Guimarães Rosa. "Um gole do melhor Rioja para o grande Rosa", disse Rios, antes dessa entrevista realizada durante a 10ª Feira Internacional do Livro em Miami.

Julián Ríos – Um escritor exigente pede um leitor exigente e isso independe do império televisivo. Os bons leitores brasileiros devem lembrar-se do início do "Brás Cubas" de Machado, em que o narrador tem a esperança de ter dez ou cinco leitores; ele cita Stendhal, que nutria um pouco mais de esperança, ou seja, ter cem leitores... Hoje, Machado tem muitos milhares de leitores no Brasil e no mundo. Além disso, não considero a televisão, o cinema ou o vídeo, e sim a confusão que muitos leitores fazem, pois não sabem ou não querem distinguir a literatura da pseudoliteratura, um lixo de papel em que se imprimem palavras sem risco, sem ousadia, sem invenção.
Hatoum – Textos que podem ser vistos e não lidos...
Ríos – Livros que querem imitar a televisão, querem ser o sucedâneo da TV, do cinema. O tempo da literatura é outro porque o tempo da leitura é mais lento, reflexivo. É muito bom que todas as linguagens existam, mas cada uma tem de correr na sua pista. Eu costumo dizer que não quero um leitor médio, quero-o por inteiro.
Quando um autor escreve um livro que é taxado de complicado ou obscuro eu me lembro de uma citação de Shakespeare: "Não existe obscuridade, sim ignorância." Na Espanha traduz-se qualquer coisa dos Estados Unidos, toneladas de tontices chegam de todas as latitudes... Tertúlias de palavras sem melodia...
Hatoum – Você mantém uma cumplicidade criativa com a obra de alguns pintores e também pratica o que chama de crítica-ficção...
Ríos – Minha formação ilustrada começou com livros ilustrados. Quando criança mirava e admirava os livros ilustrados da "Ilustração Artística" e os grandes clássicos que eram editados com desenhos de Doré. Adorava esses livros –"A Divina Comédia", "Orlando Furioso"– que foram livros da minha juventude dourada, meu Cine-Doré. Há muitos anos mantenho esse diálogo vibrante com as imagens; em alguns dos meus textos os co-autores são na verdade artistas plásticos como Arroyo, Antonio Saura e recentemente Lichtenstein. Essse artistas, assim como escritores de ontem, de hoje e de sempre como Rabelais, Paz, Joyce, Roussel, Fuentes, Sterne são minhas companhias nos passeios textuais que fazem Babelle e Milalias, os protagonistas de "Larva".
Hatoum – Babelle, Milalias e o Herr Narrator, o velho Reis– Ríos...
Ríos – Sim, os três reapareceram em "Álbum de Babel", meu último livro. A literatura, as artes plásticas e a erotização da linguagem são temas deste album babélico. Na verdade, esse ciclo narrativo em constante metamorfose começa com "Larva" e continua com "La Vida Sexual de las Palabras" e "Poundemonium": os protagonistas não se cansam de explorar diversas cidades e culturas, um nomadismo moderno que é também uma viagem através do idioma espanhol e seu coadjuvantes. Em suma: um orbilivro ou o livro como mundo...
Hatoum – Você afirmou nessa Feira de Livros que o romance "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, é um dos romances mais importantes deste século. Já li em entrevistas suas elogios a Rosa. Você o leu em português?
Ríos – O português de Rosa só vocês podem captar com antenas parababélicas. Ali há um arabesco linguístico, uma festa inventiva de palavras, uma interação ousada e genial de arcaísmos e neologismos. Uma travessia quase sem fim de um imenso território linguístico, uma invenção voraz que eu vi e li no conto "Meu Tio o Iauaretê" um texto quase intraduzível, não é? Eu disse aqui nos Estados Unidos e em outros países que Rosa é o escritor da América Latina que mais me influenciou, e não digo isso por estar falando ao público brasileiro. No último verão eu participei no Escorial do colóquio "Narrativa de Dois Mundos" e soube que a boa tradução espanhola que Angel Crespo fêz do "Grande Sertão" está esgotada há anos. É mais um absurdo editorial...
Hatoum – Mas há uma lógica nisso, a lógica do mercado, a dolarização da literatura. Felizmente ainda há editores ousados...
Ríos – Editores que tem a coragem de publicar um Perec, um Calvino, um Lezama Lima, um Gaddis. Jornalistas culturais, poetas e escritores que participam dos bons e raros suplementos de cultura de alguns jornais também estimulam a boa literatura. Não se pode confundir marketing com literatura. Agora mesmo na Espanha um punhado de escritores medíocres consideram "Paradiso" e "Rayuela" (O Jogo da Amarelinha) romances superados ou excessivos. Na literatura é melhor pecar por excesso criativo... Qualquer trecho ou linha de "Rayuela" emite mais sinais de inventividade do que as obras completas dos naturalistas deste fim de século.
Hatoum – Afora Rosa, Machado de Assis mostrou com a sua obra fenomenal que a noção de periferia é muito relativa. Penso que a atmosfera cultural do Rio de Janeiro em 1900 era um pouco acanhada; no entanto, Machado estava escrevendo uma obra em sintonia com o que havia de melhor na Europa e, em certo sentido, até superior do ponto de vista do estilo, do jogo da ironia, da paródia, da frase que concilia tensão com intensidade de sentido... com certeza há outros grandes escritores brasileiros que desconheço, mas tive o prazer de ler também alguns contos e o romance "Avalovara" de Osman Lins. Admiro poetas como Drummond e João Cabral, e os poetas concretos... Devo dizer que o poeta Haroldo de Campos é também um grande crítico, ele e a professora Irlemar Chiampi escreveram textos muito interessantes sobre o meu romance "Larva"... Mas acho que a literatura brasileira é mal divulgada na Europa, ou melhor, não encontrou os leitores que merece. Injustamente, não conseguiu ocupar o lugar que a ficção em língua espanhola ocupa. Mas já há sinais de mudanças nesse cenário, pois a tradução dos grandes livros incita a tradução de outros. Na França, onde moro, há um interesse crescente pela boa literatura brasileira, basta citar as novas traduções de duas obras-primas: "Os Sertões" e o "Grande Sertão: Veredas".
Hatoum – O que você achou da tradução brasileira do "Solo a Duas Vozes"?
Ríos – Você está brincando? Essa tradução é uma verdade ou uma ficção?
Hatoum – Eu li o texto em português, publicado em 1987.
Ríos – Você não o traduziu mentalmente do espanhol?
Hatoum – Não, foi publicado pela editora Roswitha Kempf.
Ríos – Kempf? Kempf ou Kampf? Bem... de qualquer forma essa batalha eu perdi. Saio dessa peleja combalido. Você bem que podia mandar um exemplar para este leitor galego que gosta de glosar e cotejar as traduções.

Texto Anterior: A utilidade do corpo inocente
Próximo Texto: "A arte contemporânea é redundante"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.