São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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Brasileiros usam e abusam da nudez feminina

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Usa-se e abusa-se, no Brasil, da nudez feminina. Nos outdoors ou comerciais televisivos, mulheres (semi)nuas anunciam de tudo: relógios e sabonetes, jeans e imóveis. Essa falta de imaginação publicitária leva o Primeiro Mundo a atribuir sangue quente às nossas recatadas concidadãs. Nem sempre foi assim.
Trinta anos atrás havia filmes proibidos para menores de 21 anos. Por exemplo: "O Colecionador". Que hoje passa sem cortes na Sessão da Tarde. Na década seguinte, "O Último Tango em Paris" foi longamente vetado. Bem depois, "O Império dos Sentidos" causou comoção nacional e filas idem. Em "A Laranja Mecânica", a censura tapou o sexo de uma moça com um círculo que, tentando acompanhá-la, pulava obscenamente na tela. Nas orgias das pornochanchadas, ninguém tirava a roupa ou a calcinha. A liberação dos pêlos pubianos só veio no final do ciclo militar.
Houve, portanto, um tempo –nem tão distante– em que a nudez feminina era caso de polícia, demissão, deserção e/ou excomunhão. Quando não de homicídio justificado pela "legítima defesa da honra". Sair pelada em capa de revista ou alhures era coisa de "vagabundas" e "sem-vergonhas". E se estava tão por fora quanto –no máximo umbigo de vedete. O pêndulo oscilou tanto para o lado oposto que, agora, inusitado mesmo seria flagrar, no camarote presidencial, uma vedete só com o umbigo de fora. De tão corriqueira, a nudez feminina, que já deixara de ser ignominiosa, não é mais sequer atalho seguro para a fama imediata. Onde estão as neves de outrora? Quem lembra das peladas do último carnaval?
Ainda assim, atrizes, modelos (inclusive as de verdade), cantoras, apresentadoras de TV, socialites (seja lá o que isso for neste país) continuam bronzeando seus mamilos e outros recessos íntimos com o brilho dos flashes fotográficos. Por quê? Não há como escapar ao neoliberalismo: se há oferta é porque há procura e vice-versa. A novidade é o surgimento de uma procura especializada, que requer não tanto a beleza despida quanto o desnudamento da fama.
Caso beleza fosse realmente essencial, bastaria às publicações comprar, digamos, negativos americanos. Sem querer ofender o ufanismo nacional, o Brasil não tem como concorrer com um país cuja população feminina é o dobro da sua, onde a maioria das mulheres teve acesso na infância às proteínas necessárias e onde milhões têm recursos para fazer regime e aeróbica. No entanto, com exceção de alguns casos circenses como o de gêmeas, trigêmeas –e, quiçá no futuro, siamesas unidas pelas pudendas–, os nus mais concorridos e bem-pagos do país parecem ser os de mulheres já conhecidas e famosas, independentemente de sua qualidade estética.
Isso talvez se possa explicar como uma espécie de striptease de pós-modernidade. O essencial no strip-tease não é a nudez, mas o desnudamento. A atração da mulher nua está no tê-la visto vestida. Em outras palavras, esse desnudamento é o "mise en practique" da célebre definição segundo a qual a mulher ideal deve ser uma dama na sociedade e uma prostituta na cama. A dama não tem graça. Nem a prostituta. Acompanhar, porém, a transformação de uma na outra promete uma experiência entre heurística e ontológica.
(Pode-se entender dessa forma –sem necessariamente justificá-la– a ira de muitas feministas contra o "sexual harassment". Simplificando: na esfera privada, as mulheres são tradicionalmente "conquistadas", "possuídas", "comidas", "penetradas". No espaço público, elas têm que se mostrar iguais e competitivas. Os valores masculinos, por seu turno, são os mesmos em qualquer lugar. Cantar uma mulher no trabalho é, no limite, jogar sujo com a duplicidade inevitável de seus papéis, insinuando que nem na sociedade ela é uma dama.
Demanda-se atualmente não a simples nudez e sim o desnudamento –striptease– do corpo que se viu vestido. Nada mais banal do que mais uma mulher despida. Que revista, porém, não daria na capa a nudez, digamos, de Lilian Witte Fibe, Rita Camata ou, quando estava no poder, Zélia Cardoso de Mello? Se tirar a roupa para as câmeras era antigamente apenas o possível começo de uma carreira, hoje chega a representar sua culminação. Quem quiser faturar com a nudez precisa dar duro, ficar famosa. Caso contrário, terá que suar muitos carnavais de graça até merecer alguns segundos às três da manhã numa emissora menor. E se há machismo indiscutível na vontade de desnudar mulheres importantes, este convive com o reconhecimento masculino de que poder, fama e talento são cada vez mais necessários para tonar interessantes também as mulheres.

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