São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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Cem anos de provocação

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Terça-feira passada, a colunista social Danuza Leão publicou em sua coluna a seguinte nota: "Hoje, Dia Internacional da Mulher, é bom lembrar as mais recentes e radicais posturas políticas do sexo frágil: Gal Costa, no Imperator, Maria Padilha, na "Playboy", e –por quê não?– Lilian Ramos no Sambódromo". Exagero da Danusa. Ela, porém, não foi a única pessoa a cobrir de lantejoulas políticas um gesto meramente cênico (Gal), utilitário (Padilha precisava de grana para investir numa produção teatral) e gratuito (Lilian). Hoje, sim, elas merecem ser lembradas. Pois hoje se comemora o centenário do strip-tease.
Claro que, como tantas outras efemérides, também esta vive envolta em controvérsias. Há quem acredite ser o strip-tease, a começar pelo nome, uma invenção americana, com mais de cem anos de bons serviços prestados à excitação masculina. Forçando a barra, poderíamos recuar séculos e mais séculos, até chegarmos à bíblica Salomé e apontá-la como a primeira stripper sobre a face da Terra. Prefiro me fiar na enciclopédica erudição do inglês Patrick Robertson, cujo compêndio "The Book of Firsts" oficializa o dia 13 de março de 1894 como a estréia do strip-tease em todos os seus conformes.
Deu-se o momentoso evento no teatro de variedades Divan Fayouau, na rue des Martyrs, em Paris, onde uma tal de Yvette tirou a roupa, languidamente, e deitou-se
numa cama. Tamanha foi a repercussão do quadro, adrede intitulado "Le Coucher d'Yvette", que a dançarina viu-se obrigada a se profissionalizar como "effeuilleuse",
vocábulo mais antigo que stripper e derivado do verbo "efeuiller", que literalmente significa desfolhar e acabou virando sinônimo de "deshabiller" (desnudar-se). Daí a
expressão "desfolhando (o correto seria despetalando) a margarida", por sinal título de um dos primeiros filmes de Brigitte Bardot, no qual, naturalmente, ela fazia o que
Yvette fez no Divan Fayouau.
A dança dos sete véus de Salome foi apenas um trailer, ela própria, suspeita-se, inspirada pela verdadeira matriz gestual do strip-tease, a dança do ventre, que reputam tão antiga quanto os movimentos coreográficos, de caráter iniciatório, que as egípcias do tempo dos faraós executavam para a deusa Ísis. Mímicas exibicionistas,
mais para Narciso do que para Ísis, a dança do ventre e o strip-tease compartilham o mesmo objetivo (despertar o desejo erótico) e praticamente os mesmos movimentos
corporais (golpes com o ventre, ondulação das ancas etc.), ritmados por uma música de fundo. O desnudamento faz a grande diferença, em favor do strip-tease, aumentando a carga erótica e incitando a lascívia, sobretudo naqueles mais sensíveis à scoptofilia (desejo de ver), vulgarmente chamados de "voyeurs".
Enobrecida pelos erotólogos como um "fenômeno capital para a compreensão da sociologia do erotismo" (assim escreveu Lo Duca, no prefácio ao pedante "Metaphysique du Strip-Tease", de Denys Chevalier, editado há 34 anos pela
Jean-Jacques Pauvert), a arte de tirar a roupa num palco há muito perdeu sua aura transgressiva. Na era do sexo explícito, o ritual encantatório do desnudamento banalizou-se a tal ponto que as "strippers" de hoje em dia se vêem forçadas a levar às ultimas consequências as pantomimas do ato amoroso, base alegórica do strip-tease, desnaturando a sua liturgia original. Aboliram o "cache-sexe" e outros fetiches, abandonaram a sutileza e quase todas as alusões que, mesmo quando vulgares (felação simulada etc.), dirigiam-se apenas à solidão mental da libido, criando e entretendo uma farsa erótica.
Por ser uma farsa, os espetáculos com shows de nudismo desde cedo foram identificados nos EUA como "burlesque" ou "burlesk", sinônimo de burla, zombaria. Dividiam as honras da noitada com esquetes cômicos, quando não se aplicavam, eles próprios, a despertar mais gargalhadas do que ereções na platéia. Nova York era uma festa permanente para quem apreciava o gênero, no início do século. O "burlesque" triturava e pervertia qualquer modalidade artística, através da paródia escrachada, com toques rabelaisianos, privilegiando o baixo ventre. Seu erotismo era mais agressivo –logo, presumo, menos eficaz– que o estimulado nos cabarés parisienses.
A elite puritana o via como uma espécie de bordel com auditório, um antro de devassas e concupiscentes, sem atentar para sua utilidade social, como válvula de escape de energias libidinais contidas, para não falar de suas contribuições para o show biz. Só neste ponto a elite concordava com os comunistas do "Daily Worker",
que consideravam o "burlesque" um câncer capitalista, "produto infame de um sistema de exploração pelo qual as prostitutas ascendem ao palco". E ai de quem fizesse a ressalva de que em suas paródias (de Shakespeare, clássicos do teatro, da literatura e da pintura) o "burlesque" afinal levava um pouco de "cultura elevada" à sua dissoluta clientela.
Como o teatro, o cinema, o balé e a ópera, o espetáculo burlesco também produziu estrelas, a cujos pés alguns dos marmanjos mais disputados da alta burguesia nova-iorquina faziam fila. Várias delas saíram das folias de Florenz Ziegfeld, todas acalentavam vôos artísticos mais elevados e algumas, como Gypsy Rose Lee e Lilly
St.-Cyr, conseguiram chegar a Hollywood. Gypsy, que morreu em 1970, com 57 anos, tornou-se tão famosa que virou tema de musical na Broadway, adaptado ao cinema (com Natalie Wood) e, recentemente, à televisão.
Para mostrar aos preconceituosos que não era boa só de tirar a roupa, Gypsy, nascida Louise Hovick, escreveu alguns romances policiais. Nem assim, contudo, suplantou sua colega Ann Corio, tida, com todos os méritos, como a intelectual do strip-tease. Suas frases vinham sempre recheadas de expressões gregas e latinas. Claro que, na hora de desfolhar a margarida, ela se apegava ao esperanto do strip, para não perder o tease.
Além de romances de mistério, Gypsy escreveu sua autobiografia, mas com nenhuma de suas aventuras livrescas ganhou muito dinheiro. Menos dotada, porém mais esperta, a "stripper" Libby Jones preferiu outro ramo de investimento literário, já então mais profícuo: o livro de auto-ajuda. O que lançou em 1968 reproduzia o mesmo título de um LP só de musicas langorosas, "How To Strip For Your Husband" (Como se despir para o seu marido), que obtivera boa vendagem na década anterior.
Partindo do princípio de que "o corpo da mulher ainda é o mais belo objeto que o homem gosta de contemplar e o ato de despir-se, um prelúdio do ato amoroso", Jones produziu um minucioso manual de strip-tease "para ajudar a mulher americana a potencializar sua feminilidade ameaçada pelos perigos da emancipação". A pedagógica obra, apesar de criticada como oportunista, reificante e outros bichos, vendeu que nem chuchu em fim de feira. Não disponho de dados sobre a sua eficácia, mas é de se supor que só tenha dado certo em alcovas onde o tesão havia apenas tirado uma soneca.

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