São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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A candidatura FHC

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Desde que Fernando Henrique Cardoso passou a ocupar o Ministério da Fazenda tenho tido o cuidado de evitar pronunciar-me a seu respeito. Uma amizade fraternal de mais de 40 anos, mais de 20 anos de trabalho em comum aconselhavam a prudência. No entanto, há momentos em que o silêncio pode virar oportunismo; creio hoje ser meu dever manifestar-me.
Convém, antes de tudo, lembrar que nosso relacionamento nem sempre implicou coincidência de opiniões. Depois que Fernando Henrique se transformou num político militante, continuei apenas sendo um observador, que pretende intervir principalmente na discussão das idéias, de sorte que permanecer por algum tempo sobre o muro permite enxergar o que se passa nos quintais.
Não creio que a ida de Fernando Henrique para o Ministério da Fazenda tenha sido obra do acaso. Há muito tempo que me preocupo com o fenômeno de encantamento que ocorre na política de uma sociedade de massas. Acredito que em determinados momentos certas pessoas e certas instituições passam a representar não tanto os interesses, mas sobretudo a própria identidade dos cidadãos. Este fenômeno já foi descrito por Durkheim, quando tentou explicar por que soldados morrem por uma bandeira.
Como resultado do impeachment do governo Collor, boa parte da política brasileira passou a girar em torno das imagens de um comportamento racional. Em vez de modernidade, o que se pede é racionalidade, mesmo que seja aparente. Nessas condições, é natural que Fernando Henrique, cujo temperamento de negociador conhecemos desde os tempos da universidade, crescesse politicamente. Além disso, anos de prática deram-lhe uma sagacidade e uma prudência muito diferentes da sabedoria acadêmica.
Desse modo, quando Itamar Franco o transferiu de ministério, vi nessa jogada antes de tudo uma forma de imprimir a seu governo um timbre mais racional, tirando proveito de um profissional que hoje alia formas diferentes de saber.
Da família aos amigos, a opinião era quase unânime: não havia condições para um ministro da Fazenda enfrentar o desafio da inflação: o governo é desafinado e não possui base parlamentar sólida. Muitos o aconselharam a abandonar o barco na primeira oportunidade. Neste ponto Fernando Henrique surpreendeu. Pacientemente construiu uma admirável engenharia política, conseguindo lançar um plano de estabilização com grande possibilidade de sucesso.
O que deve ele agora fazer? Cuidar do plano e desistir de sua candidatura à Presidência? Muitos insistem nesta alternativa, taxando a contrária até mesmo de impatriótica. Fernando Henrique seria mais um político oportunista.
Interessante o raciocínio de certos economistas: depois de terem afirmado anos a fio que os problemas econômicos brasileiros têm origem eminentemente política, passam a cobrar do atual ministro da Fazenda um comportamento eminentemente técnico e abrangente, o único que consideram compatível com um grande estadista. Como aprofundar as reformas estruturais, sem o quê por certo qualquer plano de estabilização fará água, levando em conta a atual situação de fraca governabilidade e crise geral do sistema partidário? Seria possível fazer mais nas atuais circunstâncias? Fernando Henrique cedeu, e muito mais do que eu gostaria. Mas a questão crucial é perguntar: como proceder para que mude a atual conjuntura econômica e política na ponta de um governo que manda muito pouco?
Mesmo que o plano tenha sucesso até a posse do próximo governo, em poucos meses este pode pôr tudo a perder. Basta colocar obstáculos ao processo de privatização, ceder às pressões corporativistas a fim de que não se reforme a máquina administrativa do Estado, não alterando a estrutura atual do funcionalismo, em particular do ensino e da pesquisa. Basta emperrar a reforma tributária, notadamente se subordinando às pressões desta ou daquela bancada ruralista, a fim de que os proprietários rurais e urbanos continuem pagando impostos no escandaloso nível de agora. E sobretudo como atuar neste ano eleitoral a fim de que a própria campanha venha a representar um passo adiante na consciência política comum?
A simples enumeração dos problemas cruciais a serem vencidos para que se estabilize a economia e se retome o desenvolvimento econômico é suficiente para mostrar que nem a direita nem a esquerda, tais como estão atualmente organizadas, possuem capacidade de se mobilizar politicamente para fazer aquela aliança necessária que assegure governabilidade e promova a reforma do Estado de que carecemos.
É a vez do centro, e digo isto com tristeza e relutância, pois durante mais de dez anos tenho pugnado por uma aliança partindo da esquerda. Ora, o PT está paralisado por suas lutas internas e pela demora em alijar seus ranços leninistas, de sorte que a esperança de um governo progressista de Lula só poderia ser cumprida se, como pensam vários petistas, ele alijasse uma parte de suas bases. Mas sob esse aspecto o PT não é um partido como os outros, veja-se o silêncio que hoje cai sobre Luiza Erundina, que fez uma boa administração numa cidade insana como São Paulo. Além do mais me parece que Lula ainda é muito religioso para topar uma aventura dessas. E no que concerne à direita, como ela não possui um candidato palatável eleitoralmente, está sempre em busca de um aventureiro que, depois de eleito, possa ser manipulado ou alijado do governo quando abusar dos poderes que lhe foram consentidos.
Não creio que qualquer partido sozinho tenha a chave dos atuais problemas brasileiros e nem vejo que o PT isolado possa representar o atual interesse das forças populares, mantendo uma concepção totalmente desatualizada do capitalismo contemporâneo. Francamente nossa esquerda não está entendendo o que se passa pelo mundo e, se o mesmo acontece com a direita, esta não precisa de consciência crítica para defender seus interesses. Daí a importância do centro, particularmente do PSDB, de certos grupos do PMDB e adjacências.
Mas a crise do sistema partidário não afeta particularmente este centro? Embora crescendo, o PSDB não tem condições de levar a cabo sozinho uma campanha presidencial; o PMDB está paralisado pelo cancro do quercismo e o PFL é uma ostra que se apega a qualquer tipo de governo. Como apostar assim numa política de centro? Em primeiro lugar, porque, depois do temporal Collor e da desmoralização do Congresso, o eleitorado tende a ser conservador, visando o seguro, privilegiando o político racional em confronto com o político carismático. Neste centro é que uma candidatura Fernando Henrique, mais do que qualquer outra, pode encarnar essa ideologia da racionalidade e de uma transição sem grandes custos para todas as partes. Desde que, porém, signifique um passo adiante no processo de delineamento das forças políticas atualmente em jogo no cenário nacional. Se não tiver pejo de se colocar efetivamente como aquilo que é, empurrando os radicais da esquerda e da direita, se não soçobrar na geléia geral duma posição anti-Lula, já sua campanha terá um enorme efeito regenerador tanto no sistema político como um todo, quanto ao nível da própria sociedade. Fernando Henrique no páreo já força Lula a um melhor desempenho. E a sociedade, liberta da fuligem da inflação que encobre os conflitos sociais e de classe, poderá mostrar a si mesma como se demarca o terreno da luta em que amigos e inimigos se posicionam.

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