São Paulo, segunda-feira, 14 de março de 1994
Texto Anterior | Índice

O caminho do real

EDMAR BACHA

A primeira semana de lançamento da URV esteve dominada pelos debates sobre as "perdas salariais" e os "aumentos abusivos de preços". São discussões naturais num país traumatizado por uma longa série de planos de estabilização, baseados em choques, confiscos e congelamentos. Custa à população e à imprensa acreditar que, desta vez, possa ser diferente –que agora se esteja, de fato, procurando combater a inflação por suas causas e não por suas consequências.
Mas é verdade. É por isso mesmo que se optou por um programa de estabilização integralmente pré-anunciado e debatido à exaustão com a classe política e a sociedade civil, antes de sua implantação. Está mais do que provado que, no Brasil redemocratizado, a estabilização não pode vir por um passe de mágica da equipe econômica, ou uma decisão unilateral do ministro da Fazenda. Ela tem que vir sustentada pelo governo inteiro, absorvida pela classe política e apoiada pela sociedade civil. Sustentação, absorção e apoio derivados não de atos de demagogia econômica, mas de uma compreensão compartilhada das profundas mudanças institucionais necessárias para derrubar uma inflação sexagenária que hoje atinge os 40% ao mês.
O fundamental para a estabilização são instituições públicas sólidas que promovam o ajuste fiscal e garantam a confiança na moeda. O resto virá como consequência. Conflito distributivo e oligopólios, por exemplo, não são privilégios brasileiros. A Índia os têm muito mais fortes que os nossos, e não obstante sua taxa de inflação tem sido tradicionalmente inferior a 10% ao ano.
A discussão sobre "perdas salariais" se alimenta da desconfiança sobre se a superinflação irá mesmo acabar. Na dúvida, as lideranças sindicais parecem preferir ficar com as defesas antigas, que apenas garantem a propagação da inflação sem melhorar a situação do trabalhador. A proposta do governo é clara: após a introdução do real não haverá mais política salarial no sentido atual, em que o governo determina o que o trabalhador pode ganhar. O caminho do futuro são os contratos coletivos do trabalho, livremente acordados entre empregados e empregadores.
Na área trabalhista, portanto, a tarefa do momento não é a discussão de como o governo poderá compensar eventuais "perdas salariais", mas sim a discussão –constitucional e legal– de como retirar a ditadura do governo sobre os salários, substituindo-a pela livre negociação baseada em contratos coletivos respeitosos da diversidade de nossos mercados de trabalho.
Um mercado de trabalho baseado em contratos coletivos, livres da sufocante regulação governamental atual, poderá dar sustento a uma moeda real, pois, com eles, os trabalhadores poderão dispensar a indexação governamental, baseada em éditos legais ou decisões normativas da Justiça do Trabalho. Abolida a indexação generalizada dos salários, abrir-se-á o caminho para uma economia desindexada e portanto sem mecanismos de realimentação inflacionária.
A contrapartida dessa mudança de comportamento, na área trabalhista, tem que ser dada na área monetária. Pois, para que os trabalhadores trilhem com confiança esse novo caminho, será necessário criar novas instituições monetárias que assegurem que a inflação em real será mesmo muito baixa. Isso passa necessariamente por temas como o lastreamento da nova moeda e a independência do Banco Central.
Essas mudanças monetárias podem hoje parecer exóticas para as lideranças sindicais, mas são elas que lhes possibilitarão começar a lutar por salários reais e não mais por salários nominais que se esvaem na inflação subsequente. Isso significa, para o sindicalismo, abandonar o nominalismo da corrida entre salários e preços, e contribuir para o realismo da relação entre moeda e preços.
Do mesmo modo, é contraproducente a demanda que hoje se expressa por maior regulação governamental no mercado de bens, com o pretexto de coibir eventuais "aumentos abusivos de preços". Pois tais aumentos ocorrem exatamente pela expectativa de um congelamento, ou de um tabelamento de preços na nova moeda. Mas o programa de estabilização em curso propõe exatamente o contrário.
O pressuposto é que os preços, de um modo geral, já estão alinhados ou em processo de ajuste, e, portanto, podem ser convertidos de cruzeiros em reais, por ocasião do lançamento da nova moeda, sem maiores problemas. Uma vez na nova moeda, permanece a liberdade de fixação dos preços, nos limites impostos pela demanda e pela concorrência. A demanda será mantida sob controle, por via de um Orçamento equilibrado e uma política monetária austera. A concorrência irá aumentar por via da redução das tarifas às importações. São essas medidas e não intervenções diretas nos mercados que resolverão eventuais remarcações abusivas de preços.
Para afastar de vez os temores do empresariado quanto à perspectiva de congelamentos ou controles administrativos de preços, é preciso mostrar com que outras armas o governo pretende garantir a prometida estabilidade de preços na nova moeda. A resposta é a mesma que na questão dos salários: a construção de instituições monetárias que vedem ao Banco Central a possibilidade de emitir moeda para financiar déficits do governo, ou dar assistência de liquidez a bancos falidos.
Isso requer que, num primeiro momento, o real somente possa ser emitido contra lastro em ativos reais, de conversibilidade imediata em ouro ou moedas fortes. Daqui a alguns anos, restabelecida a confiança na moeda nacional, essa fase inicial poderá ser superada, introduzindo-se, então, progressivamente, o lastro fracionário, até voltarmos a ter uma moeda fiduciária, integralmente garantida pela solidez de nossas próprias instituições monetárias.

Texto Anterior: O PSDB na encruzilhada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.