São Paulo, terça-feira, 15 de março de 1994
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Diretor de 'Angels' volta com Shakespeare

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Declan Donnellan, diretor de "As You Like It", que mostrou em São Paulo três anos atrás, e de "Angels in America", a peça teatral de maior impacto no mundo, que estreou em Londres dois anos atrás, está de volta. "Medida por Medida" é a nova montagem shakespeariana do diretor britânico, com três apresentações marcadas para o teatro Sérgio Cardoso, nos próximos dias 7, 8 e 9. Iniciando excursão mundial, ele deu entrevista à Folha por telefone, da Austrália.
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Folha - Você deixou uma grande impressão no Brasil, com "As You Like It". A peça influenciou diversos diretores brasileiros, com a interpretação delicada, os cenários contidos. Podemos esperar o mesmo de "Medida por Medida"?
Declan Donnellan - Não. "Medida por Medida" é muito, muito, muito diferente. A peça é muito mais amarga. Foi escrita quando Shakespeare estava mais velho e desiludido com a sociedade. É basicamente uma sátira sobre o que acontece quando os puritanos tomam o poder. Em outras palavras, é uma sátira sobre... Vocês também enfrentam um retorno da direita moralista, no Brasil? Com as seitas religiosas?
Folha - Sim.
Donnellan - E a sua influência política está crescendo?
Folha - Sim, certamente. É um movimento bastante conservador.
Donnellan - Sim, e bastante reacionário. Mas, na verdade, não é reacionário. De certo modo, é revolucionário. A peça "Medida por Medida" é o que acontece quando a nova direita, a nova direita jovem, toma o poder e depõe o governo. É também sobre aquilo por que nós somos muito famosos, na Inglaterra: os escândalos sexuais. Eu ouvi que o seu presidente também... O seu presidente foi fotografado num balcão com uma mulher sem... (ri) A peça é muito sobre um puritano –bem, o seu presidente não é um puritano– sobre o que acontece quando um partido puritano chega ao poder. E eles são expostos como hipócritas, porque estão envolvidos num escândalo sexual. Assim, eu temo que seja muito, muito, muito atual para a política britânica, porque é o que nós fazemos o tempo todo (ri). Eu me pergunto quão pertinente é, para o Brasil.
Folha - Muito, eu acredito. A nova montagem tem então algo a ver com a última, "Angels in America"?
Donnellan - Bem, com certeza no fato de ser sobre –mesmo tendo sido escrita por Shakespeare– sobre uma situação política atual. E é ligada a "Angels in America" no fato de tocar na relação entre política nacional e política sexual. Nós colocamos a peça em figurino moderno, mas não mudamos nenhuma das palavras. É espantoso como funciona bem.
Folha - "Angels in America" foi a sua primeira peça contemporânea e agora você está de volta a Shakespeare. Você viu similaridade entre Tony Kushner e Shakespeare? Como você trabalhou com os dois autores?
Donnellan - Bom, Shakespeare tem a grande vantagem de estar morto. (ri) E durante os ensaios Tony estava quase tanto quanto. (ri) É mais excitante trabalhar com um dramaturgo vivo, porque ele está realmente escrevendo sobre temas que estão acontecendo hoje. Mas também é muito difícil trabalhar com um dramaturgo vivo. Mais: o texto de "Medida por Medida" foi terminado 390 anos atrás, enquanto Tony não havia terminado de escrever "Perestroika", a segunda parte de "Angels in America', até depois de nós termos estreado a primeira parte. Então, foi muito difícil para nós. Mas, por estranho que seja, também não foi assim tão diferente, sob certos aspectos. Todas as peças que nós escolhemos tratam dos grandes temas: política, sexo, o sobrenatural, o governo. Nós escolhemos fazer "Angels in America" porque era sobre isso. E esses são os temas de muitos dos maiores escritores do século 17. A razão por que a peça de Tony é tão boa é que ele escolhe enfrentar esses temas.
Folha - Shakespeare se tornou um sucesso no Brasil de hoje, assim como no mundo todo. Hoje, quase no fim do milênio. Por que um dramaturgo do século 17 faz tanto sucesso agora?
Donnellan - Eu acredito que Shakespeare é como um espelho. A grande coisa sobre Shakespeare é que nós não sabemos nada sobre ele. E a outra coisa maravilhosa é que ele está morto e não pode contra-argumentar. (ri) Seu grande talento é escrever situações e personagens com tamanha profundidade, com três dimensões, com um tal grau de intensidade, que nós podemos nos ver neles. As peças de Shakespeare sempre parecem ser relevantes, elas sempre parecem ser sobre a situação de hoje. É quase como dizer, "este é um espelho extraordinário". Porque toda vez que eu olho, é como se fosse eu. Mas, na verdade, é a qualidade do espelho, que reflete o que você é, o que você está sentindo, o que você está fazendo. Shakespeare faz isso. Outra grande coisa sobre Shakespeare é que ele, eu acho, não tem nada para dizer. Ele não é um político que prega para nós. Ele é um artista cuja política pessoal é suprimida de seu trabalho. No lugar, ele nos faz uma série de perguntas desafiadoras sobre o modo como nós vivemos. Quer dizer, um dos temas da peça, é claro, é a opressão da mulher pelo homem. É também sobre molestamento sexual e sobre a reintrodução da pena de morte. Vocês têm pena de morte no Brasil?
Folha - Não.
Donnellan - E há um movimento para trazê-la de volta?
Folha - Sim, e bem forte.
Donnellan - A peça é sobre se é certo ou não trazer de volta a pena de morte. "Medida por Medida" também é muito interessante quanto à Aids, porque na trama... A trama de "Medida por Medida" mostra um duque que se esconde e deixa um jovem puritano no poder. O puritano, chamado Angelo, impõe a pena de morte para o sexo fora do casamento e uma freira, Isabela, vem visitá-lo para pedir pela vida de seu irmão, que engravidou a namorada. Angelo, que é um puritano frio, de repente se incendeia pela freira, porque é tão pura, casta e forte. Ele se apaixona por ela e diz que, se ela deitar com ele, ele libertará seu irmão. Como você pode ver, é bem atual, para muitas situações no mundo, hoje.
Folha - Angelo tem alguma ligação com Roy Cohn, de "Angels", não tem?
Donnellan - Ele tem, é claro, no fato de que é um hipócrita que tem poder político. Angelo tem muitas relações com Roy Cohn.
Folha - "Angels" é uma peça americana e não foi um sucesso nos EUA, de início. Teve que cruzar o oceano. Como você explica isso?
Donnellan - Ela tinha que vir a Londres para ser aceita. Há muitas razões para isso. O fato de ter alcançado um enorme sucesso em Londres avisou os críticos de Nova York, porque há mais teatro sério e novo em Londres do que na Broadway.
Folha - Na minha maneira de ver, há uma nova geração de autores, como Kushner, Howard Korder, assim como uma nova geração de diretores, como você e Robert Lepage, com valores diversos, neste fim do milênio. Você também vê assim?
Donnellan - Pode ser o caso, mas eu não sou particularmente consciente de ser parte de nenhuma geração. Eu certamente tenho conhecimento do trabalho dos meus contemporâneos, mas eu não sei se há um "milenianismo" nisso. Eu penso que, conforme as velhas ordens caem, como Tony escreve em "Angels in America", as coisas estão mudando. Por exemplo, entre os intelectuais no Ocidente havia certezas políticas. Aquelas certezas foram mantidas pelas realidades da Guerra Fria. E agora que o império russo caiu nós temos que nos reencontrar no mundo de uma forma muito diferente. Acho que aqueles acontecimentos estão nos formando, muito mais do que qualquer outra coisa. Mas talvez eles tenham a ver com o milênio, eu não sei. Eu certamente acredito que há uma consciência espiritual cada vez maior. Algo que eu acho bem-vindo, mas que também me assusta.
Folha - Tem havido um questionamento do modernismo. Você acha que as suas montagens e peças de autores como Tony Kushner indicam algo como o fim do modernismo?
Donnellan - Olha, o tipo de teatro em que eu acredito, o meu teatro ideal é um teatro que é feito numa escala humana. Nossas formas de entretenimento hoje, o vídeo, os "games", a televisão –você sabe, vocês têm a sua terrível Globo, e nós temos coisas horríveis também– elas todas servem, de alguma maneira, para desumanizar a vida. E eu acredito que o teatro deve ser um lugar onde nós celebramos a vida. E nós deveríamos, de alguma maneira, celebrar a proporção humana nele. Eu não sou interessado em ver cenários grandes, inteligentes. Nem (o cenógrafo) Nick Ormerod. Nós não nos interessamos por conceitos intelectuais que estrangulem a peça. Eu acho que o que é muito importante saber é que nós trabalhamos em "Medida por Medida" exatamente do mesmo jeito que trabalhamos em "Angels in America" e "As You Like It". Nós começamos sem nenhuma idéia de como faríamos as peças. E na sala, com o material cru dos atores, nós construímos a montagem. O que é muito diferente de Nick ter idéias muito inteligentes sobre a cenografia, antes de tudo. Ou de eu ter idéias intelectuais sobre a peça antes de tudo. Nada é feito antes. A simplicidade do cenário trabalha para aumentar a arte do ator. Acho que o teatro é a arte do ator, acima de tudo. A platéia, quando vai ao teatro, vai para ter um confronto nu com outras pessoas. Eu penso que, quando nós vamos ao teatro, ele tem que ser perigoso. O teatro tem que levar-nos ao limite de uma experiência –tenha ela a ver com Aids e política homossexual, como em "Angels in America", ou então como em "As You Like It", que deveria ser bastante assustadora, porque amar pela primeira vez é assustador. "Medida por Medida" é uma peça ainda mais assustadora, porque é sobre coisas aterrorizantes que nos afetam hoje.

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