São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
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Médico-monstro dá folga a Irma Vap

MARCO CHIARETTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Ney Latorraca e Marco Nanini estréiam "O Médico e o Monstro" no próximo dia 14 de abril, no teatro Cultura Artística, em São Paulo. Nanini é o diretor; Latorraca, o médico, Dr. Jekyll, e o monstro, Mr. Hyde. A princípio, a temporada será de quatro meses. Mas, se repetirem o sucesso de "O Mistério de Irma Vap", em cartaz há oito anos, só saem do palco no próximo milênio.
Os dois estão juntos há quase dez anos. Oito deles trocando de roupa e personagens em "Irma Vap". Em 1985, estavam os dois na novela "Um Sonho a Mais", onde Latorraca era Antônio Carlos Volpone e mais cinco tipos, e Nanini seu fiel ajudante. Desde janeiro estão ensaiando sua nova peça, e apresentando "Irma Vap".
Nanini, 45, acha que o novo trabalho "não procura a gargalhada fácil, tem um estilo mais elaborado" do que "Irma Vap". "Há um tempo pensamos que seria interessante trazer outro espetáculo; vimos este em Nova York e nos chamou a atenção", diz ele. Nanini, além de diretor, é um dos produtores da peça, junto com Latorraca e Fernando Libonati, que participou também de "Irma Vap".
"Não queremos cair na cilada do sucesso permanente. Vamos embarcar em um novo tipo de humor, um espetáculo com alma própria, que tem muito da linguagem e do estilo dos filmes 'B' que recriaram a história da dupla Jekyll/Hyde. Uma história tensa, com um estilo quase rasgado, e, ao mesmo tempo, um exercício de humor", diz Nanini, que nem quer pensar em "Hamlet", sua próxima peça (onde faz o personagem-título). "Em 'Irma Vap' podíamos fazer tudo, até mesmo pela essência da peça, mais livre; aqui não, há um pé na realidade, na história do livro.".
A nova comédia foi escrita pelo norte-americano George Oersterman. É uma adaptação do romance "O Médico e o Monstro" ("Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde"), do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), feita a partir de filmes sobre a história.
Oersterman, que deve vir ao Brasil quando a peça estrear, escreveu seu "O Médico e o Monstro" há dois anos. Pertence à mesma corrente do Teatro do Ridículo de Charles Ludlam, o autor de "Irma Vap". Na montagem novaiorquina, o autor fazia um dos personagens, Lili Gay (que no Brasil é interpretada por Octávio Mendes).
Latorraca-Hyde é um monstro tarado, sanguinolento e sedutor, que percorre os bordéis da cidade e se apaixona por Lili Gay. Ele é muito mais simpático que seu criador, Latorraca-Jekyll, um homem totalmente entregue à ciência, cercado pela mulher, Mary (Karin Rodrigues), por uma doutora rival, Berenice (Eliana Fonseca) e uma empregada fiel, Minerva (Fernando Neves). Lili, apaixonada, lhe diz: "Voce é frio, meu querido, mas eu não sinto nojo de você. Eu te recebo de braços abertos." Hyde aproveita.
O monstro, aliás, só pensa naquilo: sexo, sexo e sexo (com um pouco de drogas...). Jekyll, o médico, nunca pensa naquilo, para desespero da mulher. "Jekyll vai do quarto para o laboratório, e do laboratório para o quarto. É um caretão metódico. Mary tenta convencê-lo, convidando-o, intimando-o: 'pra caminha, pra caminha'. Hyde não: ele gosta de sexo, e de sexo pesado", diz Latorraca.
Outros personagens, como Berenice, também têm vida dupla. Aliás, a grande marca de Hyde é essa: ele revela a duplicidade em todos os personagens. E não só neles. Nos atores também. "Nos ensaios, cada um de nós ficava dizendo: eu sou mais Hyde, você é mais Jekyll. Nos dividimos. Eu mesmo, quero mais é que meu próprio Hyde saia das festas e vá para o palco", diz Latorraca.
Para Nanini, este Hyde é um ser lírico e corrosivo, e um crítico duro do moralismo profissional norte-americano. A primeira vítima do monstro na peça é um vendedor de credos, um profissional da religião, que tenta levar Hyde para o caminho do bem. Diz: "Venha para o Senhor". O monstro, ironicamente, responde que já ouviu isso na boca de um certo Jim Jones (um pregador que levou quase mil pessoas à morte, numa história de fanatismo religioso). Quando o propagandista lhe pede que entre em seu "rebanho", Hyde diz que para ele a palavra significa "dois banhos". Pobre homem: vendeu seu peixe para o ouvinte errado.
O livro de Stevenson, publicado em 1886, é um retrato da idéia duplicidade: um médico londrino, Jekyll, descobre uma droga capaz de revelar seu lado negro, Hyde. O monstro é real, um assassino sanguinário. Pior, é ele mesmo, o bom médico, transformado: de droga em droga, Jekyll vira Hyde e Hyde vira Jekyll, até o desfecho.
Stevenson escreveu o romance baseado em outro livro seu, "Deacon Brodie and the Double Life", onde ele contava a história de um ser humano real, religioso durante o dia e ladrão à noite. O par Dr. Jekyll/Mr. Hyde leva a idéia de "doppelganger", de duplo, até as últimas consequências.
Esta duplicidade se recria dentro dos personagens principais, dos outros personagens e na escolha dos atores (há homens fazendo o papel de mulheres).
Mas é na história do espetáculo que a idéia de par realidade-versão e da multiplicidade dos espelhos se revela com mais ironia: a peça que Nanini-Latorraca estão acabando de ensaiar é a versão brasileira (feita por Roberto Atahyde) da adaptação teatral (de Oersterman), que por sua vez baseava-se na versão romanceada de Stevenson, feita a partir da descrição do caso real de um diácono escocês do século passado. A peça é a versão da versão da versão da realidade.
"Com o Hyde da peça, o mal ficou mais sedutor. No fundo, ele é um poeta", diz o diretor. Para o protagonista (os protagonistas?), a pergunta é: "Existe alguém que seja só Jekyll ou só Hyde? Descobrir o quanto de cada um há em cada personagem é o segredo do meu trabalho na peça". Ou como diz o monstro, pensando em seu criador: "Você vai tentar salvar a alma do meu anjo adormecido". Enquanto isso, os espectadores, para manter a tradição da dupla, devem continuar morrendo. De rir.

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