São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Campos traduz o Rilke sem metáforas

DANIEL PIZA

Da Reportagem LocalA cada ano, uma minilegião de fãs atentos espera uma tradução feita por Augusto de Campos. 1994 traz "Rilke: Poesia-Coisa" (editora Imago, amanhã nas livrarias), tradução de 20 poemas de cinco livros do escritor alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926). Como Rimbaud, de quem Campos traduziu poemas em "Rimbaud Livre" (Perspectiva, 1992), Rilke é um dos fundadores da modernidade.
Na entrevista a seguir, Campos, 62, que falou com exclusividade à Folha em sua casa em São Paulo, conta qual foi sua intenção ao traduzir Rilke e diz por que é mais reconhecido hoje como tradutor que como poeta. Ele foi um dos líderes do movimento concretista (em 1956), ao lado de seu irmão Haroldo e Décio Pignatari. Este ano lança ainda uma coletânea de poemas seus pela Perspectiva e um CD com alguns deles musicados por seu filho, Cid Campos.
*
Folha - Esta tradução de Rilke tem a ver com a de Rimbaud publicada em 1992?
Augusto de Campos - Tem tudo a ver. As duas tentam lançar novos olhares sobre a produção mais visualista e menos visionária desses dois poetas. Quis mostrar que não existe só o Rimbaud e o Rilke místicos, que na poesia deles também existe uma linha mais contida, mais concisa, sem as grandes metáforas.
Folha - Mas Rimbaud e Rilke criaram imagens que formularam a modernidade. Essas "visões" não interessam?
Campos - Claro que sim. O Rilke e o Rimbaud visionários são tão importantes quanto os de minhas traduções. Mas no livro "Rilke: Poesia-Coisa" você tem, por exemplo, "Nascimento de Vênus", que é um poema aparentado ao "Venus Anadiomene" de Rimbaud; ambos invertem o mito clássico pelo prisma moderno. O Rilke do meu livro não deixa de ser Rilke, é apenas um Rilke menos metafórico. O que acontece é que, também no Brasil, o Rilke místico, das "Elegias de Duíno" e outros livros, sempre foi muito mais traduzido, e mal. Toda a geração de 45 foi influenciada por ele.
Folha - O que é traduzir bem?
Campos - A melhor tradução é a que não parece tradução. O poema em português tem de ser isso, um poema em português. O que vemos geralmente é o simulacro de tradução. Os tradutores de poesia aqui colocam os originais num leito de Procusto: apertam ou esticam a métrica à vontade. Não respeitam a métrica do original. O caso Rilke é exemplar: com exceção das de Manuel Bandeira e Décio Pignatari, as traduções são todas assim. Os anjos de Rilke mereciam mais consideração.
Folha - Mas basta recriar a métrica e as aliterações do original para ter uma boa tradução?
Campos - Não, claro. Há uma área de intuição. É preciso ir além dos aspectos formais. É como se você tivesse de descolar as palavras, para poder transubstanciá-las. Existe um processo mediúnico aí. Mesmo toda a técnica do mundo "precisa do favor dos deuses", como dizia Borges. Mas se os versos originais têm dez sílabas, os da tradução têm de ter dez sílabas –ou 12, não importa. O que importa é criar um "pattern" (padrão) e segui-lo até o final. A melodia em Rilke é muito clara, não se foge dela.
Folha - Mas em suas traduções às vezes o sr. põe aliterações que não existem no mesmo trecho do original. Por quê?
Campos - Você tem de seguir a lei das compensações. Eu só ponho aliterações umas linhas depois de onde estão no original se ainda estou no mesmo âmbito contextual. Nem sempre dá para você recriar os aspectos formais do original, mas se você perde aqui tem de ganhar ali. Sabendo fazer isso com respeito ao original, claro.
Folha - Como o sr. explica que, depois das propostas da poesia concreta, de romper com a sintaxe e o verso, o sr. venha fazendo traduções principalmente do modernismo ou de períodos anteriores, de poesias que ainda têm a sintaxe e o verso?
Campos - Se não traduzo mais poetas contemporâneos é porque não há tantos que me interessem. Mas traduzi os textos de John Cage (compositor americano, morto ano retrasado), por exemplo.
Folha - A poesia atual parece dividida entre uma poesia discursiva, como a de John Ashbery e Joseph Brodsky, e a chamada poesia visual. Qual sua opinião sobre elas?
Campos - Vejo muito mais a aceitação dessa poesia discursiva, de que não gosto. A poesia experimental, que de fato nem sempre é consistente, é muito menos aceita. Poesia hoje é quase uma operação de catacumba. O domínio do facilitário coloca a poesia cada vez mais à margem. A poesia é exigente, sua leitura é difícil, trabalhosa. Há um grande desestímulo na área hoje. É por isso que eu e Haroldo somos mais reconhecidos como tradutores que poetas.
Folha - No entanto, Haroldo voltou ao verso. O sr. permanece mais próximo da herança concretista. Por quê?
Campos - Porque sou mais assim, tenho esse lado mais minimalista, mais econômico. A poesia concreta foi uma experiência muito dura, foi até o limite, até quase quebrar a cara. É difícil ser experimental, e mais difícil passar das experiências com poemas de duas palavras para coisas mais substanciais. Mas não sou eu quem vai julgar minha própria obra.

Texto Anterior: Museu expõe novos artistas
Próximo Texto: Traduções primam pela melodia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.