São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 1994
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No sítio do Pica-Pau Amarelo

JOÃO BATISTA NATALI

Pedrinho e Narizinho perguntaram certa vez quem eram os bolcheviques da Rússia. A Guerra Fria não havia chegado ao sítio do Pica-Pau Amarelo e vovó Benta era de um didatismo desprovido de qualquer paixão doutrinária. Sua resposta foi mais ou menos a seguinte: os russos estão empenhados numa experiência que, se der certo, será aproveitada no futuro pelo resto da humanidade.
Há uma relação estreita entre o pequeno episódio idealizado há meio século por Monteiro Lobato e a força que a candidatura petista demonstra neste início de campanha presidencial. Não que Luiz Inácio Lula da Silva seja um herdeiro direto da burocracia stalinista. Mas o programa de governo do PT –analisado pelos filiados de um partido que ainda não abandonou o socialismo como meta histórica–, tende a deslocar o eixo das discussões para as formas mais anacrônicas de instrumentalizar o Estado para a tarefa de reduzir as desigualdades sociais.
O PT não cresceu por acaso nesses últimos 14 anos. Ele foi favorecido pela inexistência de projetos alternativos das elites que pudessem estimular um novo perfil na divisão da renda nacional. Essas elites não permaneceram inertes, mas se limitaram a avalizar mecanismos da democracia representativa que deram às instituições uma legitimidade apenas formal. A miséria e a fome são sintomas tristes e caricaturais dessa verdade.
O problema é saber até que ponto, dividido que se encontra como uma colcha de retalhos de tendências internas, o PT possui hoje condições de dar a seu candidato um discurso coerente. A resposta é por enquanto negativa. O programa se dilui em objetivos contraditórios. Um único exemplo: há, de um lado, a proposta de melhorar os critérios de representação dos Estados na Câmara, para que o cidadão se reconheça melhor nas decisões do Congresso; mas, de outro lado, há também a debilitação do Legislativo por sua contraposição à esfera da chamada iniciativa popular -uma contrafação esquerdizante do que a Constituição já prevê.
O risco está, então, no fato de não se moldar um único Lula para a disputa da sucessão de Itamar. Haverá dois, três ou mais. Nessa ambiguidade, de duas uma: ou os petistas perdem uma oportunidade preciosa de transmitir à sociedade suas concepções redistributivistas, ou então os muitos Lulas se reunificam num único personagem, mas unicamente para ser enxovalhado no plano pessoal. A campanha eleitoral perderia sua dimensão didática e cairia numa mistura de imagens em confronto e baixarias do calibre de Miriam Cordeiro.
Voltemos ao socialismo. A palavra não aparece no programa de governo como bandeira central. Muito pelo contrário, o esforço se concentra por vezes em dissimulá-la em excesso, mas segundo uma lógica por demais fundamentada nos supostos interesses dos trabalhadores. Interesses que, para a extrema esquerda, implicam reviravoltas efetivas das instituições.
Pedrinho e Narizinho compreenderam vovó Benta e talvez tenham se lembrado dela após o colapso do socialismo real. Será que também compreenderiam, nesse quadro de referências, o programa de governo do PT?

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