São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 1994
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Turismo 'hard' corta a Transamazônica

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim como existem turistas dispostos a pagar milhares de dólares por cruzeiros em navios com ar-condicionado pelos rios da bacia amazônica, há aqueles que preferem comer pó. Para os fãs do turismo linha-dura, a região tem várias opções de estradas de poeira e lama, conforme a época do ano.
A BR-364, que passa por Rondônia, foi campeã de citações na imprensa estrangeira na década de 80, quando o estado se transformou em uma imagem de satélite divulgada incessantemente, da "National Geographic" à "Neewsweek", mostrando a mata destruída. Mas para os conhecedores, a estrada com charme, que simboliza o que já foi chamado de "inferno verde", é a Transamazônica.
A equipe de filmagem de Jacques Cousteau abandonou o barco para filmar na Transamazônica. Os franceses deixaram um legado curioso em parte da população local. Muitos associam sua passagem com a moda de críticas no exterior à devastação da região.
O primeiro erro da estrada é o seu nome. Ela não é "transamazônica", já que o trecho final pelo estado de Amazonas não foi concluído. O segundo é a própria estrada, uma invenção do regime militar para resolver o problema fundiário no Nordeste e povoar a Amazônia, transportando levas de camponeses sem-terra para o meio do mato, que foram praticamente abandonados em alguns anos, sem ajuda para praticar a agricultura e nem meios de transportar sua produção por uma estrada que a floresta teima em reclamar.
O próprio traçado da rodovia parece ter sido feito à lápis em um atlas escolar, cortando áreas indígenas pelo meio.
O turista transamazônico deve esquecer os confortos da civilização. A viagem pela estrada cujo nome oficial é uma homenagem ao ex-ministro Mario Andreazza não inclui atrações espetaculares, apesar de paisagens bonitas surgirem por acaso. Mas o turismo local é instrutivo. Pode-se aprender mais sobre a Amazônia do que junto a guias turísticos em um cruzeiro.
Agora é a estação de chuvas, e boa parte da estrada deve estar intransitável. As linhas "regulares" de ônibus ficam menos irregulares no meio da ano, com a poeira.
Perto de Marabá, no Pará, fica a hidrelétrica de Tucuruí, cuja construção matou e desperdiçou uma quantidade descomunal de árvores. A floresta se vingou com emanações pútridas que comprometem o funcionamento da usina e através de nuvens de moscas que lembram as pragas bíblicas contra o Egito.
Muitas das comunidades ao longo da estrada são conhecidas pela quilometragem, que reinicia a cada trecho –por exemplo, o Km 30 do trecho Altamira-Itaituba (PA). "De dia é 30, de noite é 38", diz a sabedoria local. Dois repórteres da Folha presenciaram um tiroteio certa vez, mas o calibre pode ter sido 32. Houve dúvidas.
Com o regime militar completando seu trigésimo aniversário, o turista pode posar para fotos em Medicilândia ("mede-se lama", mais sabedoria local), povoado em homenagem ao general Emilo Médici, criador da "Transa".
A Transamazônia oferece curiosos souvenirs. Pode ser, por exemplo, um folheto de uma "mini-clínica" em Altamira (PA). "Mês de maio, mês de Maria, e em homenagem ao mês das mães faremos este ano a mesma promoção do ano passado, cem ligações de trompas inteiramente grátis. Você paga apenas a taxa de medicação", diz o folheto. Turismo certamente instrutivo.

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