São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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O que está faltando para o 'Plano I-real'

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mais "negócios da China", sob a aparência de operações legais. Há alguns anos, grandes empresas, bancos e grandes aplicadores ganham fortunas com operações que não levam ninguém para a cadeia, embora representem um assalto contra a sociedade, a classe média e o povão.
São operações devidamente apoiadas em leis, criadas e mantidas por ministros e suas 2equipes embora, na prática, sejam verdadeiros crimes contra todos. As leis destinadas a proporcionar dólares para o Brasil, via exportações, nestes últimos anos, são um bom exemplo da aberração.
Elas só começaram a ser modificadas na semana passada, sem grande alarde na imprensa e sem que a opinião pública percebesse os males que elas têm provocado. Para que deixem de ser uma fonte de inflação, é preciso que o Congresso entre em ação, forçando o Ministério da Fazenda a corrigir o facilitário das fraudes.
O esquema de "negócios da China" com os dólares é muito simples. O Ministério da Fazenda, já há alguns anos, criou empréstimos especiais, com juros baixíssimos, para empresas que desejem exportar, vender mercadorias no exterior. Como sempre, há uma pretensa justificativa para o privilégio concedido a grupos empresariais: é preciso ajudá-los a vencer a concorrência internacional.
Até aí, tudo explicável, mentira ou não. Acontece, porém, que já há alguns anos as leis no Brasil são feitas com "buracos", brechas. Tudo para permitir que as empresas ajam de forma criminosa, sem correr o risco de punição.
O esquema mais comum para facilitar as negociatas –às custas da classe média e do povão, repita-se– é "esquecer" de incluir, no texto das leis e portarias, punições e multas desestimuladoras para quem realizar operações fraudulentas. É como, por exemplo, uma lei que proibisse as pessoas de cometerem assassinatos –mas não previsse punição para quem matasse seu semelhante.
No caso das exportações, a porta para as negociatas foi aberta através de um mecanismo que muitos ministros "amigos de empresários" sempre utilizaram no Brasil. Ajudados por formadores de opinião e líderes empresariais, os ministros dizem que é preciso desburocratizar, simplificar –"para não atrapalhar" os empresários. E arrombam as portas para as fraudes.
Em resumo: a pretexto de estimular as exportações, os empréstimos a juros baixíssimos são concedidos sem as exigências normais. Ou, mais claramente: o empresário não precisa provar que realmente vai exportar as mercadorias. É dispensado de apresentar um contrato de exportação, ou qualquer prova de que realmente tem condições e intenção de vender lá fora. Ele simplesmente "declara" que vai exportar, digamos, US$ 20 milhões e imediatamente recebe a quantia equivalente, ou mais ou menos CR$ 1,5 bilhão.
O que a empresa faz com esse dinheiro "adiantado"? Aplica na produção das mercadorias que vai exportar? Não. O dinheiro é aplicado a juros fantásticos –principalmente nestes últimos anos, nos quais o próprio Banco Central tem-se incumbido de puxá-los para níveis inacreditáveis.
E, depois, quando o prazo do empréstimo vence e chega o momento de devolvê-lo? As multas e punições previstas nas leis têm sido bastante "camaradas", para não anular os lucros das empresas fraudadoras. E sempre tem havido a chance de, baseado em portarias e outros mecanismos aparentemente legais, os ministros da Fazenda "mui amigos" dos empresários concederem perdão de multas e outras punições.
É esta a praxe, no Brasil. O governo, o Estado, está a serviço de grupos empresariais, graças ao poder absolutista que o Ministério da Fazenda ganhou no trato dos dinheiros públicos.
Um exemplo: a Cooperativa Agrícola de Cotia, a mais tradicional organização do gênero, acumulou uma dívida bancária de US$ 600 milhões –grande parte dela com o banco oficial de São Paulo (US$ 250 milhões...). Entre seus débitos, estão empréstimos de "crédito à exportação", não cumpridos. Para sair do buraco, a cooperativa está sendo socorrida por bancos oficiais, com renegociação inclusive daqueles empréstimos "para exportar"... (e se fosse uma estatal, hein?)
Como é que estas operações fraudulentas trazem prejuízos à classe média, ao povão, a toda a sociedade brasileira? É matemático. Paralelamente a estes empréstimos às exportações, há uma enxurrada de dólares que entra no mercado brasileiro exatamente para lucrar com as incríveis taxas de juros reais, acima da inflação, que andam pelos 30% a 40% ao ano, até dez vezes o que o aplicador pode ganhar no resto do mundo...
Com os empréstimos às exportações, somados à troca de dólares por cruzeiros, o Banco Central é obrigado a realizar emissões maciças de moeda. Depois, o Tesouro emite títulos da dívida para tirar de circulação o dinheiro assim injetado na economia. Não são operações isoladas. São bilhões de dólares por semana. São trilhões de cruzeiros por semana.
Em resumo: ao contrário do que o ministro da Fazenda repete por aí, a dívida interna do Tesouro não cresce porque "o governo gasta mais do que arrecada". Ela cresce, porque o Tesouro emite títulos, tolamente, para tirar dinheiro de circulação –e esse dinheiro foi desnecessariamente emitido pelo Banco Central para alimentar a entrada desnecessária de dólares e as operações fraudulentas com o crédito às exportações.
Fechando o raciocínio: os ministros da Fazenda e suas equipes dizem à sociedade que os juros têm que ser altos por causa da exagerada dívida interna. Mas a dívida cresce exatamente porque os juros são exagerados e atraem dólares, além das operações fraudulentas oficialmente conhecidas.
Então, está claro: se a dívida e os juros altos são causas da inflação, não há como fugir à conclusão de que os "negócios da China", que trazem lucros fabulosos a privilegiados, têm consequências dramáticas para a sociedade, sem que a opinião pública perceba. O problema não é o lucro que as empresas têm com as fraudes e a política de juros: o problema é que elas têm sustentado a inflação.
O "Plano I-real" está nas ruas. Para transformá-lo em "Plano Real" e derrubar a inflação, a equipe econômica poderia abandonar o discurso demagógico contra os salários, as aposentadorias, o salário mínimo, o funcionalismo. E mexer, já, para valer, nestes dois focos de lucros e de inflação mantidos nos últimos anos: a política de juros e a política de atração de dólares. A equipe inteira sabe que a farra lucrativa já durou anos, já durou demais. Precisa acabar.
Este é um país incrivelmente otário. Ministros negam dinheiro até para hospitais, remédios. Todos os dias, jornais e TVs mostram crianças, jovens, velhos, chorando até 12, 24 ou 36 horas em filas, em macas no chão (claro que nunca apareceu um netinho ou avozinho de um ministro ou economista da equipe, ou de um jornalista deslumbrado adepto dos "cortes necessários"). E ministros e sua equipe soltam bilhões para fraudes e negocinhos especiais.
Quando? Todos os dias. Vai aqui um pequeno exemplo horripilante: na surdina, o ministro da Fazenda autorizou, com o aval posterior do Conselho Monetário Nacional, o refinanciamento de empréstimos de uns US$ 500 milhões para os agricultores do Programa de Desenvolvimento do Cerrado. Esses agricultores já tiveram uns 20 anos para pagar, não pagaram, ganharam mais uns 12 anos para "enrolar".
Quem são eles? Um punhadinho de famílias de origem japonesa, privilegiado por um programa financiado pelos governos do Brasil e do Japão. Dinheiro para comprar o feijão produzido pelos lavradores baianos de Irecê não tem não, não é ministro? Meio bilhão de dólares para caloteiros com padrinho tem sim, não é ministro?

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