São Paulo, terça-feira, 22 de março de 1994
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Espólio de Noêmia Mourão está em leilão

FEDERICO MENGOZZI
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O anúncio dos jornais é seco como as inscrições de uma lápide: "Leilão do espólio de Noêmia Mourão". Sob essas palavras, comerciais e frias, está escrito que se encerra um capítulo da pequena história da arte brasileira, aquela que tangencia os marcos fundamentais, os movimentos essenciais e os nomes basilares.
O espólio de Noêmia é o destaque de uma hasta de mil lotes conduzida de hoje a sábado pelo leiloeiro público Aguinaldo Gabriel A. Camorim e pelo marchand João Wilson Berti. Do conjunto, um terço das obras pertenceu à artista e percorre toda a sua trajetória, incursiona pelo desenho, escultura e pintura e expõe o seu jeito gentil de se expressar. São 330 peças, incluindo duas dezenas de trabalhos de Di Cavalcanti, entre eles "Retrato de Noêmia", de 1949, e outro retrato seu, de 1967, por Flávio de Carvalho.
Noêmia Mourão (1907-1992) morava sozinha e não tinha parentes próximos vivos. O espólio, que inclui ainda alguns apartamentos –fora do leilão–, beneficia quatro filhos de um primo, que não a conheceram. O leiloeiro Camorim, 48, avalia que a coleção da artista alcance US$ 200 mil, um terço do valor de mercado. "É maravilhoso para quem quer comprar. Acredito que teremos bons lances", diz.
"Flores" (1945), óleo sobre tela de Di Cavalcanti, uma das obras em leilão, registra até uma passagem policial. O quadro foi roubado do apartamento de Noêmia logo após sua morte e, devido à repercussão, devolvido uma semana depois. Empacotado, o quadro foi deixado na rodoviária de Araraquara. Uma gravura de Picasso, não mais que uma reprodução tipográfica, foi roubada e devolvida com o óleo.
Noêmia tinha tantos Di porque foi casada com o artista carioca e, segundo o pintor e crítico Paolo Maranca, 56, que conviveu com ela, está na raiz do surgimento das mulatas, tema que virou um emblema de sua arte e quase uma prisão –ou caricatura. "As mulatas do Di são filhas das meninas que a Noêmia pintava. Di era muito ágil, viu as figuras, apropriou-se delas e as transformou em mulatas, inserindo-as num ambiente brasileiro e sensual", diz Maranca.
No leilão, estão desenhos executados a partir de 1932, em grupos de 20 desenhos, telas da fase francesa e telas do período final, de 1972 até a morte.
Peças em bronze e terracota revelam a escultora, iniciada no ateliê de Victor Brecheret. Por coincidência, o leilão tem um outro retrato de Noêmia por Di Cavalcanti que não pertenceu à coleção da artista. É "A Namorada (Retrato de Noêmia)", um óleo sobre tela de 1951, avaliado entre US$ 45 mil e US$ 60 mil. Noêmia Mourão sobreviveu esteticamente ao fim de seu casamento com Di, mas é difícil esquecer os vínculos que, até hoje, os unem.
Espera-se que alguém se lembre de doar uma peça da artista a instituições como o Museu de Arte de São Paulo e o Museu de Arte Contemporânea da USP, que nada registram de Noêmia Mourão em seus catálogos. Mas é, diria Macunaíma e outros heróis tortos do (mau) caráter nacional, um sonho impossível.

Leilão: Espólio de Noêmia Mourão
Artistas: Noêmia Mourão, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho e outros
Quando: de hoje a sábado, às 21h30
Onde: r. Estados Unidos, 1.011, tel. 011/852-7322

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