São Paulo, terça-feira, 22 de março de 1994
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O dia em que "Deus e o Diabo" foi o futuro

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Às oito e meia da noite de 16 de março de 1964 eu não sabia que minha vida ia mudar. As nove horas ia passar pela primeira vez no Brasil o filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha. Três dias antes, eu estivera no comício de Jango na Central do Brasil, onde a noite caíra estrelada por milhares de tochas de petróleo que os trabalhadores da Petrobrás erguiam como personagens de Eisenstein e eu olhava apaixonado o rosto da primeira-dama no palanque.
Como era linda Tereza Goulart, com um penteado alto de laquê dos anos 60, morena, sexy, ali, em pleno momento épico das reformas de base (eu me sentia culpado de desejar a primeira-dama numa hora tão grave). Todos nós sentiamos "históricos", como caídos de repente na praça amotinada de São Petesburgo ou vendo a decapitação de Maria Antonieta na Bastilha.
Eu estava ali dentro, mas não me sentia muito parte daquilo tudo. Estranho, um presidente da República pedindo apoio a uma multidão de miseráveis para salvá-los. De quê? Sua mulher parecia alheia, linda, intocada por aquela massa. Será que ela o amava? Será que o traía? O épico e o psicológico corriam separados ali, em duas partes, e eu me sentia inquieto com essa divisão. (Tudo isso parece tão longe, mas certamente até hoje aquelas tochas, aquele vestido azul da primeira dama, a louca bravata de Jango, tudo isso mexe com tua vida, oh dançarino "punk" do Massivo!...) Uma revolução seria feita, mas não rolou nada. Dali a três dias, num cinema do Rio, fez-se uma.
As esquerdas
Carregado com essas emoções recentíssimas, três dias depois, fui chegando à porta do cinema Ópera na praia de Botafogo. Era lindo e imenso o Ópera, com seu nome épico. Eu ia com minha namorada Thereza Simões com quem percorri depois um trem fantasma de amor e dor. A platéia se enchia de personalidades da esquerda carioca. É preciso que vocês entendam –pálidos intelectuais de hoje– que o mundo real era uma miragem ideológica, uma projeção de nosso desejo, naquele verão de 30 anos atrás no Rio, 15 dias antes do general Mourão Filho descer com seus tanques de realidade.
O público do filme era formado por mais do que simples pessoas; eram ilhas de idéias. Havia uma gama de tipos, de cores, de maneiras de ver o mundo, todos com a marca aguda da "mudança", todos operando para "mudar" o país, todos vagamente se desprezando. Sempre havia alguém à tua esquerda. Havia o Partidão, solidamente vigilante para com os revisionistas pequeno-burgueses (ah... dor que me persegue até hoje, quando um Paim, um Canindé Pegado me olha...). As esquerdas tinham ali uma curiosidade tolerante para com estas manifestações artísticas da "superestrutura", todos mal vestidos, de passagem entre uma panfletagem e outra.
Havia os membros da AP (Ação Popular) fundada, entre outros, por nosso Betinho, uma costela mineira e católica da esquerda independente, Marx divinizado. Havia os festivos de Ipanema pseudotrotskistas, país da Libelu; havia "polopistas", da Polop (Política Operária), havia o Cinema Novo (lembro de Joaquim Pedro, de Ruy Guerra, de Leon, Cacá, todos de camisa de marinheiro e calça jeans –uniforme entre rude e sofisticado). Havia o CPC (lembro de Vianninha, Oduvaldo Vianna Filho ali, desconfiado, alma rasgada entre Rimbaud e Kruschov). Eu apertava a mão de Thereza e via essa massa toda em segundo plano, tendo como perfil essencial o rosto de minha amada, eu que nunca filmara, eu que era tratado como um reles noviço pela corte do Cinema Novo, cruel, olímpica.
O olho de boi
E aí o filme começou. Um plano aéreo do sertão de Cocorobó. Corte súbito para o olho morto de um boi roído de sol. Villa Lobos na trilha. E caiu um silêncio sideral na sala. Todos os olhos estavam sendo feridos por imagens absolutamente novas. Como explicar isso? Não era apenas um bom filme que víamos. Nada. Era um país que nascia à nossa frente. Não um país que reconhecíamos como sendo, digamos, de Graciliano. Não. Era uma realidade desconhecida que começávamos a compreender. Ela esteve esboçada na literatura, em "Os Sertões", em Rosa. Mas, "no olho", era a primeira vez. Ela nos via. Ela nos incluía.
"Nós" eramos vistos por essa paisagem, "nós" eramos descobertos por esse mundo de secura e violência que aparecia na tela. Nós eramos arrancados das cadeiras, da paz de nossos papos ideológicos e atirados dentro do filme. Acabava ali a idéia de que a realidade era alguma coisa "fora" de nós.
A partir daquela noite, nós éramos personagens de um Brasil muito mais fundo que nossa vã inexperiência de intelectuais. O filme invertia tudo sobre o Bem e o Mal. Disse-me Roberto Ventura que em "Os Sertões", pela primeira vez, o miserável era colocado em posição de sujeito heróico em nossa história. Em "Deus e o Diabo" estava ali o herói miserável, mas também o matador não era vilão. Antonio da Mortes era tocado de funda dor e do desejo de exterminar a miséria. Bons e maus andavam num deserto metafísico e shakespeareano em pleno Nordeste.
A esquerda estava toda ali, à beira de sua grande derrota (dali a 15 dias) e ainda teve tempo de ver sua melhor produção nascer. Todas as personagens se contorciam numa danação de heróis e vítimas, em uma complexidade que não tínhamos alcançado. Não sabíamos ainda, mas estava selada ali a causa de nosso fracasso de 1 de abril de 64.
A esquerda tinha errado por muitos anos. Nossos dias estavam contados. A importância de Glauber na reforma do pensamento de esquerda do país é maior que se pensa. Três anos depois, ele ataca o "povo" sacralizado em "Terra em Transe", execrado pelos comunas. Anos depois, num volteio dialético com os militares, elogia Golbery e é massacrado pelos xiitas. Glauber tinha feito uma revolução dentro da revolução.
Trinta anos depois daquela noite estrelada (porque tantas estrelas?), vemos hoje que a idéia de processo e de diferença continua inapreensível como uma asa.
Olhei para trás quando as imagens finais do filme brilhavam sob o som de Villa Lobos. Vianninha estava em pé na cadeira do cinema e pulava de euforia. As pessoas estavam pálidas da luz final como diante de fantasmas. Os cineastas entraram em pânico. O rio tinha mudado de rumo. Quem partira para fazer filmes veristas, filhos do neo-realismo fôra pegado pelo raio de um cinema épico, me disse 30 anos depois Cacá Diegues. Joaquim Pedro falava em rasgar o roteiro de "O Padre e a Moça". Ruy Guerra terminava a montagem de "Os Fuzis" e começou a mexer em tudo, ficou meses na moviola.
Que seria de nós? O mundo não era mais tão fácil como pensávamos. Nossa consciência não era linear. A realidade não era mais realista. O filme dava conta dessa eterna luta entre o sutil e o grosso. Sempre quase ganha o grosso. E o eterno dilema sutil-grosso continua. Vemos a esquerda se perder em discussões iguais a de 30 anos atrás, antes daquela noite do cinema Ópera. Veio 64, veio 68, veio a luta suicida, veio a democracia formal. Passaram muitas ilusões.
Mas "Deus e o Diabo" não era ilusão. Muitas realidades foram ilusão. Mas aquela ficção não; aquela ficção era a realidade. Precisamos de um novo filme como "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Aluguem em vídeo e vejam o que era o futuro.

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