São Paulo, sexta-feira, 25 de março de 1994
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Telefonema teria evitado choque de Poderes

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Quando viaja para seu município, Serra Talhada (PE), o presidente da Câmara, Inocêncio Oliveira (PFL-PE), costuma isolar-se do mundo. Sua casa é tomada à noite por um silêncio de cemitério.
Há uma semana, na transição de sexta-feira para a madrugada de sábado, a calma do local foi cortada por insistentes telefonemas disparados de Brasília. Quando entrou na sala, Inocêncio foi avisado de Henrique Hargreaves, ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência, deixara três recados.
Atônito, o presidente da Câmara discou para Hargreaves. Passava pouco da meia-noite. Ouviu do ministro o relato sobre uma tensa reunião em que, duas horas antes, o governo havia decidido abrir guerra contra o Congresso e o Judiciário.
Ao ser informado de que no centro da turbulência estava a decisão dos congressistas e juízes do STF de se autoconcederem um aumento salarial de 10,94%, Inocêncio reagiu espantado: "Mas Hargreaves, com um simples ato da Mesa (Diretora da Câmara) eu poderia ter revisto esse reajuste".
Era tarde. A nota do Planalto, com duros ataques aos outros dois Poderes, já havia sido divulgada. Inocêncio passou o fim-de-semana em Pernambuco. Na segunda-feira, o país estava mergulhado numa crise que poderia ter sido evitada com um simples telefonema.
Ontem à noite, em reunião no Palácio do Planalto, o presidente Itamar Franco revelava aos seus auxiliares em que condições admitiria abrir negociação com o STF. Apegava-se a pequenos caprichos. Dizia, por exemplo, que um telefonema do presidente do tribunal, Octávio Gallotti, poderia ser um bom começo. Pela primeira vez desde o início da crise, o presidente reconhecia que é preciso obter uma saída que preserve a integridade do Supremo.
O tamanho do desassossego que tomou conta de Brasília não combina com o apelido que a crise ganhou nos bastidores do Congresso. Os parlamentares se referem ao episódio como "a guerra da gorjeta", numa referência aos 10,94% que estão em jogo, um percentual equivalente ao que se costuma dar ao garçom no restaurante.
A ebulição trouxe de volta duas instituições que estavam fora de moda na política brasileira: os militares e o "clube de Juiz de Fora", integrado pelos auxiliares mais próximos de Itamar Franco. Outro subproduto da crise foi o estremecimento das relações entre o presidente e o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso.
Uma frase de Fernando Henrique resumia suas preocupações na última quarta-feira: "O Itamar está muito envolvido ou deixando-se envolver pelos militares. Assim, eu estou fora". O parlamentar que ouviu a frase do ministro teve a impressão de que o interlocutor se encontrava extenuado, muito próximo do seu limite.
A quarta-feira, de fato, não foi um dia fácil para Fernando Henrique. O ministro certificou-se naquele dia de que Itamar havia tido uma recaída. Desde a sua entrada no governo, o Itamar dos pitos em ministros, dos preços dos remédios, dos juros altos, esse presidente das crises cíclicas havia submergido. Naquela quarta-feira, porém, o velho Itamar reapareceu diante de Fernando Henrique.
Aconselhado por Henrique Hargreaves e por José de Castro, presidente da Telerj e seu consultor jurídico de cabeceira, Itamar rejeitava a todo custo a negociação. "Não negocio, não negocio e não negocio", repetiu. O presidente queria que o STF se dobrasse. "Eles precisam reconhecer que erraram", disse.
O aumento de 10,94% para o Legislativo e o Judiciário resultou da opção por uma data: o dia 20 de cada mês. Os juízes chegaram à média salarial dos últimos quatro meses fazendo a conversão dos próprios vencimentos à URV no dia 20, data em que o governo lhes repassa o dinheiro da folha de pagamento. O governo exige que a conversão seja feita com base no dia 30. É disso que Itamar não abre mão.
Nos últimos dois dias, os ministros militares mostravam-se abertíssimos à negociação. Só não admitiam uma coisa: um recuo do presidente. "A partir do momento que o presidente assumiu a nossa posição, ficamos tranquilos e confiantes de que ele não vai ceder", dizia na quarta-feira o secretário de Administração do governo, general Romildo Canhim.
A solução montada na quarta-feira parecia perfeita. O governo reeditaria a medida provisória que instituiu a URV. Tornaria mais claro o artigo que obriga a conversão dos salários de todos os servidores públicos pelo dia 30. O Congresso voltaria atrás e converteria os salários dos seus funcionários por esta data, abrindo caminho para que o STF fizesse o mesmo. Itamar, como desejam os militares, veria consagrado o dia 30.
Todos os atores da crise, incluindo os militares e o STF, aceitaram a solução. Mas o presidente bateu o pé, rejeitando qualquer tipo de negociação.
O curioso é que o STF, que hoje resiste às pressões, optou pela conversão salarial no dia 20 a pedido de um sindicato conhecido apenas em Brasília, o Sindijuris, que representa a categoria dos servidores do Judiciário. Para convencer os ministros, o sindicato argumentou que a direção do Congresso já havia optado por aquela data.
Convencidos de que a conversão pelo dia 30, como queria o governo, imporia perda de 10,94% aos salários do Judiciário, os ministros aquiesceram. Nove em cada dez ministros afirmavam no início da semana que o Tribunal teria voltado atrás se tivesse recebido um pedido do governo nesse sentido. Se o Legislativo voltasse atrás também, não haveria razão para que o Judiciário ficasse isolado. Reforçava-se a convicção de que, se tivesse negociado, o governo teria evitado a crise.
Passou-se a especular em seguida sobre as razões que motivariam a teimosia de Itamar. Paulo Brossard, ministro do Supremo, tinha a sua própria tese, revelada numa frase engenhosa. A frase, na verdade uma pergunta, foi revelada à Folha por um amigo do ministro: "Se Deus limitou a inteligência, por que não limitou também a burrice?". Em outras palavras, o ministro considera que a estultice do presidente é ilimitada.
Em conversa com outro colega de Tribunal, Francisco Rezek construiu outra tese: "Ele (Itamar) está querendo criar um fato que apague da memória do brasileiro outro episódio recente em que foi flagrado em situação constrangedora", disse, referindo-se ao flagrante do Sambódromo, quando as lentes expuseram Itamar ao lado da modelo sem calcinhas.
A caixa de correspondências do Palácio do Planalto oferece uma boa explicação para a teimosia de Itamar. Desde que estourou com os outros Poderes, o presidente passou a receber de quatro a cinco cartas diariamente. Todas elas contêm frases de apoio.
O grupo de Juiz de Fora oferece outra boa explicação. O presidente só ouve de seus auxiliares palavras de estímulo. Além de Hargreaves e José de Castro, estimulam-no o secretário-geral da Presidência, Mauro Durante, e a assessora especial Ruth Hargreaves.
Única voz destoante no Palácio do Planalto, o assessor especial para Assuntos Institucionais, Augusto Marzagão, não foi ouvido. Na terça-feira, Marzagão já aconselhava o presidente a "baixar a bola". A crise, na sua opinião, assumia proporções exageradas. No meio da semana, Marzagão desabafou: "O que vale mais, US$ 270 milhões ou a democracia?" Os dólares a que se refere o assessor de Itamar correspondem ao gasto que o governo estima que teria se concordasse com o autoreajuste do Legislativo e do Judiciário.
Nos últimos dois dias, os ministros militares se recolheram. Ontem, outro ministro do STF, Carlos Mario Veloso, parafraseava o ex-presidente americano John Kennedy, para expressar seus receios a um companheiro de toga: "Quem se assenta no lombo de um tigre, acaba no seu ventre".

Colaboraram CLÓVIS ROSSI, da Reportagem Local, e EUMANO SILVA, FLÁVIA DE LEON e SÔNIA MOSSRI, da Sucursal de Brasília

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