São Paulo, sexta-feira, 25 de março de 1994
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Texto de Kafka ganha adaptação fiel pelas mãos de Harold Pinter

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Filme: O Processo
Direção: David Jones
Roteiro: Harold Pinter
Elenco: Kyle Maclachlan, Anthony Hopkins e Jason Robards
Onde: Belas Artes (sala Oscar Niemeyer) e Morumbi 6

A maioria das adaptações de Franz Kafka (1883-1924) para cinema e teatro costumam ser mais kafkianas que o original. É como se o texto –e sobretudo o que já foi dito sobre o texto– despertasse na cabeça dos diretores todos os clichês associados a uma imagem estereotipada do escritor e da obra. "O Processo" (1993), de David Jones, é uma exceção, uma adaptação humilde.
A história de "O Processo" (o livro começou a ser escrito provavelmente em 1914 e só foi publicado, como a maior parte da obra, após a morte do escritor) tornou-se ao longo dos anos mais conhecida e comentada do que lida. As metáforas a partir da culpa difusa e dos absurdos de uma sistema judicial absoluto e irracional (a situação de um homem, Joseph K., que acorda um belo dia acusado de um crime que não sabe qual é) tomaram uma dimensão que escapa às páginas do livro para garantir à história um papel central dentro do imaginário do século 20.
Diante desse peso, cineastas como Orson Welles e, num patamar infinitamente mais baixo, Steven Soderbergh (mesclando traços da biografia do escritor tcheco ao "clima" da obra em "Kafka", de 1991) caíram na mesma armadilha. Ofuscados pelas metáforas decorrentes das análises e da imagem posteriores ao texto, estilizaram demais, sublinharam o aspecto do "pesadelo", do absurdo, recorrendo à "atmosfera", a cenários labirínticos e interpretações expressionistas, que apenas realçam os clichês. Welles chegou a terminar seu filme "O Processo", de 1962, com uma explosão atômica. Digamos que não seja um achado em termos de metáforas.
A nova adaptação de "O Processo" tem o mérito de ser fiel ao texto, privilegiar a narrativa em vez das estilizações e das caricaturas. Realizado para a BBC, com direção de David Jones ("Nunca te Vi, Sempre te Amei"), o filme contou com a mão de Harold Pinter, um dos maiores dramaturgos ingleses vivos, cuja "obra cinematográfica" inclui a adaptação de "O Criado" para Joseph Losey e um célebre roteiro nunca filmado a partir de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust.
Jones e Pinter optaram por uma versão discreta, que deixasse o texto emergir com suas ambiguidades, sem a imposição de uma imagem kafkiana pré-fabricada. Não há histeria ou caracterizações grandiosas de um pesadelo, assim como não é a atmosfera sombria que predomina. Boa parte do filme se passa numa Praga (onde o escritor nasceu e viveu a maior parte de sua vida) ensolarada.
Com essa opção, diretor e roteirista mantiveram também o humor discreto do texto, que costuma passar despercebido aos que estão por demais preocupados com "estilizações kafkianas". Um humor que se imiscui nos momentos mais terríveis, até a última cena, quando os carrascos trocam cortesias antes de executar a vítima.

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