São Paulo, sábado, 26 de março de 1994
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Os dilemas do real

ALOIZIO MERCADANTE; GUIDO MANTEGA

ALOIZIO MERCADANTE
GUIDO MANTEGA
Ainda estamos longe da perfeição. Porém percebe-se uma consciência cada vez maior da sociedade de que os planos de estabilização e a luta contra a inflação não são questões técnicas a serem resolvidas nos círculos restritos de economistas ou de membros do governo. Trata-se de questões políticas da maior repercussão, que mexem com interesses estabelecidos, alteram mecanismos de distribuição de renda, impõem prejuízos –enfim, interferem em questões nevrálgicas, suficientes, seja para glorificar governos ou desmoralizá-los, para crucificar ministros da Fazenda... ou, quem sabe, para torná-los candidatos a presidentes da República.
Entretanto, os governos parecem não se dar conta disso e continuam insistindo em decretar planos e apresentar fórmulas mágicas muito sofisticadas e de difícil entendimento, à revelia dos sindicatos, partidos, enfim dos principais atores sociais que, diante do fato consumado, oscilam entre um superficial apoio, indiferença ou plena rejeição.
O ministro Fernando Henrique Cardoso até que tentou inovar, apresentando o Plano Real com bastante antecedência e não se furtando a aparições públicas para explicá-lo, a despeito das indefinições e muitas dúvidas que deixou no ar, sobretudo em relação à chamada fase três.
Entretanto foi um diálogo de surdos, sem consequências práticas, que não levou a nenhuma alteração do plano e muito menos ao engajamento de setores sociais expressivos na sua implementação. O presidente da Força Sindical, Luiz Antônio de Medeiros, entrou de gaiato, chegou a esboçar simpatia pelo plano, mas acabou precipitando uma greve da sua categoria, tão logo se deu conta das consequências sobre o bolso dos trabalhadores.
Um eventual apoio dos trabalhadores ficou comprometido quando tomou-se conhecimento de que havia uma regra de conversão para a URV sob medida para os salários, consolidando as perdas de uma política salarial impingida pelo próprio ministro da Fazenda (que dava menos 10% da inflação do mês ao longo do quadrimestre), sob ameaça de demissão, enquanto os preços ficariam livres para reinar no mercado.
Evidentemente ninguém levou muito a sério as regras de conversão dos preços, introduzidas de última hora na medida provisória, e muito menos as eventuais reprimendas aos infratores, que surtiram a eficácia de puxões de orelhas em trombadões, haja vista os abusos de preços cometidos na última semana de fevereiro, que elevaram os preços da cesta básica em 15,87%, contra 8% a 9% das semanas anteriores, conforme dados da pesquisa Procon/Dieese.
Tardiamente o ministro da Fazenda acena com portarias da Sunab e a abertura das importações, que, como todos sabem, demoraram cerca de dois meses para se viabilizarem, quando já poderia ter lançado mão, para começo de conversa, da velha lei delegada e da legislação em vigor, enquanto não se aprova uma mais eficaz, e providenciado, com a devida antecedência, estoques reguladores de alimentos e importações de gêneros estratégicos.
Outra teria sido a trajetória do plano caso o governo tivesse-se discutido as regras de conversão com as centrais sindicais, com o patronato, funcionalismo público, obtido um acordo e, no mínimo, aplicado a mesma metodologia para salários, preços, contratos, mensalidades, planos de saúde e, não esqueçamos, tarifas, que continuam subindo acima da inflação.
As perdas cristalizadas nesta regra, devidas à aceleração inflacionária do período pré-plano, poderiam ser negociadas nas câmaras setoriais e introduzidas de modo a não perturbar a estabilidade. E os sindicatos, juntamente com outras entidades de classe e o apoio técnico dos institutos de pesquisa se engajariam na tarefa de fazer cumprir as regras, vigiando preços.
Aí sim, teríamos um ensaio de uma política de rendas, negociada e sustentada pela sociedade, que se mobilizaria para zelar pelo sucesso do plano. Até agora o governo só conseguiu a simpatia do Fundo Monetário Internacional e de parte do empresariado, que ficou satisfeita com os rumos que as coisas estão tomando e já elegeu o ministro da Fazendo o preferido das elites, nas próximas eleições presidenciais, porém sem garantir moderação nos preços, que ninguém é de ferro.
Chama atenção o fato de que a equipe econômica não tenha se dado conta que, mesmo nos ajustes econômicos mais liberais, como o do México e a Argentina, foi praticada alguma forma de política de rendas, respaldada em acordos prévios entre sindicatos e partidos, o mesmo tendo sucedido em Israel e Espanha, somente para citar os planos de estabilização mais eficazes do ponto de vista do combate à inflação. E não se utilize como desculpa o menor grau de organização da sociedade brasileira como costumam argumentar alguns membros da equipe econômica.
Mesmo com uma representatividade menor, as centrais sindicais brasileiras, juntamente com as entidades patronais e mesmo os partidos, são capazes de costurar acordos, estabelecer regras e criar canais de administração de conflitos, como câmaras setoriais, que têm se mostrado eficientes nos poucos setores em que foram viabilizadas pelo governo.
Basta conferir os dados do setor automobilístico para 1993: produção recorde de 1.391 mil veículos, 15 mil novos empregos, aumento real de salários dos metalúrgicos de 21%, aumento da arrecadação fiscal.
Sem dúvida o governo mexicano valeu-se de uma estrutura partidária monolítica, à época de implantação do plano, para fazer acordos de contenção de preços, principalmente da cesta básica. Processo semelhante se deu na Argentina, que também congelou uma série de itens de primeira necessidade, e idem em Israel, onde se fez um acordo para manter os preços estáveis por um longo tempo, e se estabeleceu reposições salariais gradativas.
A perda de controle sobre o período em curso, pode precipitar uma terceira fase do plano com medidas mais fortemente conservadoras de política monetária e creditícia, tais como o pleno atrelamento do real ao dólar e o enrijecimento da base monetária, a elevação da taxa de juros, o engessamento do Banco Central e outras medidas que atrelarão a nossa gestão econômico-financeira ao Banco Central Americano, o Federal Reserv Bank (FED).
A dolarização é hoje uma saída fácil que prescinde de negociações e de controle social de preços, com alguns resultados favoráveis no curto prazo e efeitos desastrosos no futuro, criando um clima propício para mais um estelionato eleitoral.

ALOIZIO MERCADANTE, 38, economista, é deputado federal pelo PT de São Paulo, membro da Executiva Nacional do Partido e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

GUIDO MANTEGA, 44, economista, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP), membro da Coordenação do Programa Econômico do governo do PT.

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