São Paulo, terça-feira, 29 de março de 1994
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Futilidades terapêuticas

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

VICENTE AMATO NETO
JACYR PASTERNAK
Grande parte da sociedade brasileira não compreende bem o fenômeno da morte. Muitos têm horror à morte morrida. Da morte matada até que nem tanto, especialmente quando os atingidos são de outras classe ou cor, que não as das nossas elites, e conhecemos vários e horrendos exemplos recentes. Mas quando alguém está doente e nossos recursos terapêuticos não são suficientes ou eficientes, tornam-se comuns neste país tentativas heróicas, desesperadas, caras, além de inúteis de tratamentos; o paciente é levado à Unidade de Terapia Intensiva e faz-se de tudo, com a convicção de que nada vai funcionar. Por quê? Para quê? Por que um indivíduo deve morrer cercado de aparelhos, inconsciente, sem poder passar seus últimos momentos com sua família e sem poder conversar com quem deseja? Por que, mesmo quando a pessoa solicita morrer com dignidade e autonomia nossos sistemas de assistência mostram tanta dificuldade em brecar os impulsos tratativos?
A fase final da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) epitomiza esse dilema. O mal hoje é, com toda a certeza, tratável e chega a evoluir com remissões até muito longas, a par de boa qualidade de vida: todavia, a enfermidade em si não é curável e progride, mais cedo ou mais tarde, para condições nas quais nossos procedimentos médicos passam a ser cada vez menos úteis. Ou até inúteis, senão prejudiciais. Muitos sabem disso e pedem ou exigem, com toda a franqueza, que limitemos o ímpeto intervencionista. Não se trata de eutanásia ativa ou passiva, pois isso constitui tema completamente diferente. Trata-se, na verdade, de discutir com o interessado, de uma maneira realística, o que poderá suceder com ele e perguntar também, através de absoluta abertura, o que deseja que façamos quando chegarmos a tal ponto. Muitos dirão que é penoso discutir em torno do assunto e usando nossas experiências pessoais discordamos, a propósito; pelo contrário grande parte dos envolvidos abordam a questão com certo alívio, quando incentivados. Afigura-se oportuno citar que em avaliação recente, realizada entre médicos e enfermeiras e, portanto, gente que conhece muito bem a fase final da vida em hospitais, 95% dos entrevistados foram meridianamente objetivos, afirmando que para eles e familiares não admitem a futilidade terapêutica, que é o emprego de alta tecnologia em ocasiões nas quais é evidente que ela apenas posterga, e pouco, o óbito inevitável.

VICENTE AMATO NETO, 65, médico infectologista, é chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP. Foi secretário da Saúde do Estado de São Paulo (governo Fleury).

JACYR PASTERNAK, 53, médico infectologista, é chefe de gabinete da Superintendência do Hospital das Clínicas e membro do Grupo de Transplante de Medula Óssea do Hospital Albert Einstein.

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