São Paulo, terça-feira, 29 de março de 1994
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Brasil vive à beira do destino pastelão

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O Brasil hoje é uma profunda aula de Brasil. Um fascinante "theatrum mundi", onde as personagens de nossa tragédia estão todas no palco.
Na platéia, como sempre, o povo ausente das decisões. Apagam-se as luzes. Acende-se um dístico: "A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido" –Sérgio Buarque de Hollanda. A voz de seu filho Chico canta: "Brejo da Cruz".
FHC, como um Hamlet trêmulo, pode ficar isolado neste drama todo. Tantos são os interesses personalistas contraditórios, que FHC foi sendo levado a ser uma espécie de "bonapartista afável", como um feliz acidente do nosso vazio político, como um sucedâneo iluminista de Collor, o qual inventou Itamar, que por sua vez abriu caminho para FHC e o "poder das idéias".
Por um descuido de nosso grosso processo histórico, estamos vendo o esforço de terapia antropológica que Pérsio Arida, Gustavo Franco, Bacha e outros aplicam no país.
O perigo é que FHC e sua turma são incompreensíveis para o agrarismo brasileiro de raíz tão ibérica, para o acumulativismo selvagem das elites comerciais, são incompreensíveis para os ideólogos do rancor e para os socialistas tardios.
O poder de FHC se sustenta num acaso. É um poder mallarmaico, um acaso na página branca do país. É também precariamente apoiado pelo fascínio que a classe média tem pelos "homens de letras", pelas modernas "águias de Haia".
FHC e sua equipe estão querendo realizar uma velha utopia intelectual: injetar racionalidade no mundo das coisas.
Fina tarefa
Num trecho misterioso de Sérgio Buarque em 1936, vemos a plataforma de hoje: "A grande revolução brasileira não é um fato que se registre em um instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando há pelos menos um século. (...) cujo sentido parece ser o do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura, para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de 'americano'. (...) Esta vitória não se consumará enquanto não se liquidem os fundamentos personalistas, aristocráticos, onde se assenta nossa vida social. Este processo será o da dissolução lenta da velha ordem colonial e patriarcal, com todas as consequências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar." ("Raízes do Brasil", págs. 127-135, 6ª edição).
Ou seja, a "revolução brasileira" tem de ser uma busca didática da decepção permanente. Tem de ser a administração da perda desamparada de ilusões. Fina tarefa.
Mas onde se sustenta o PSDB, a equipe para realizar este projeto? Em que engenhos, em que bancos, em que capelas, em que angus, em que conchavos e que poder econômico?
O PT tem seus barbudos, o PFL seus milionários, o PDT seus "bersaglieri", o PMDB tem seus prefeitinhos; só o PSDB não tem uma pedra para descansar a cabeça.
A estupidez nacional está obrigando FHC a ser uma espécie de messias do iluminismo, sujeito a tremores finos que podem derrubá-lo, como, por exemplo, um mau-humor juiz-forano, a vaidade de um Supremo ministro de toga.
Qualquer ventinho pode derrubar este aparato feito de brisas e finas lâminas que enfrentam os interesses personalistas. FHC e sua equipe são a tentativa da crítica da crítica da economia política, o aproveitamento do que pode ser útil do liberalismo revisto numa direção social-democrata.
Esta equipe é uma utopia intelectual brasileira. Só que seus inimigos contam com balas reais. Logo, esta utopia tem de se ancorar em alguma terra suja ou limpa. Quem? O PFL? Por que não? É igual a todos. Só o PT lhe é "moralmente" superior e já tem candidato. Mas o dilema é grande.
Com FHC candidato, seu plano pode ser destruído pelos botequineiros de Juiz de Fora, seduzidos pelos meneios da classe média burra e pelos corporativistas. Com o plano fracassado, sua candidatura gora.
Se ficar no governo, seria um herói desprendido e (se o plano der certo), elegeria até um poste. Só que, além de atacado por todos os candidatos, ainda correria o perigo de "Itamarzão-nova-fase" se vingar do antigo ídolo, num típico mecanismo reativo contra a antiga idealização. E também aí o plano pode gorar. Poucos dilemas foram tão grandes, daí a roupa negra de Hamlet.
Saudades da grossura
Como é frágil a vida de uma racionalidade democrática no Brasil! O Plano e o PSDB têm de casar a complexidade do processo com uma base brasileira popular que lhe dê a consistência dos angus sólidos.
Como misturar caviar com feijoada? A incapacidade ibérica de ver o conjunto, para além dos interesses, está de olho aberto. No escuro, ouvimos a voz de Sérgio Buarque de Hollanda: "Uma terra onde todos são barões, não é possível um acordo coletivo durável, a não ser imposto por uma força respeitável e temida". Qualquer descuido dispara a bomba suja. E a insustentável leveza da democracia de acordos.
O homem médio contempla estes malabarismos de FHC com a desconfiança que olhava as exposições cubistas. Há no país uma maquina de precisão suiça, planejada para não funcionar.
Tudo vai indo bem, manipulado por finos fios tecendo avanço e consenso, progresso e arcaísmos, quando um descuido dispara a sarabanda do circo, a máquina humorística se abre e sai o cortejo dos palhaços do "theatrum mundi" do país. E a máquina pastelão começa a sacudir sua caranguejola.
Comédia pastelão
O STF se dá aumento. Pam! Explode a redoma dos deuses de capa negra e vemos que são todos filhos agrários do bacharelismo colonial, herdeiros de engenhos que iam estudar em Coimbra, as capas negras ocultando um saber impalpável que renega o sujo país que lhes paga.
E a máquina dispara com peidos coloridos, pastelões na cara, jatos de fumaça, buzinas de palhaço. Fom fom! Torta na cara da classe média militar mantida a pão e água nas casernas e na cara do presidente classe média! Pum! Militares apertam barriga de Itamar, Itamar dá uma cambalhota no ar e catrapum!
Grita: "Não pago!" Machismo nacional se revigora. Acalma-se a cólera das legiões. Exército viriliza presidente. Pfuii!! Freme a passarinha de Lílian Ramos ("meu herói!", ela grita). Presidente não é mais otário, passa a herói, mas pela teimosia, passa a otário outra vez.
Fremem quartéis, fortalecidos, mas, (perigo!) germina um secreto amor pela grossura, medra uma desconfiança das frescuras intelectuais de FHC. O respeito fálico de Itamar dá lugar à competição fálica. No entanto, zás!, incha-se o orgulho ferido dos deuses de capa preta!
Aproveitando a zorra, Pains e Gonzagas Mottas pedem aumento, mesmo que quebre a Previdência! Por toda parte, instala-se o antigo temor pela grossura.
Corporativos, burocratas, juízes intocáveis e juízes de fora, militares, agraristas, donas-de-casa, aposentados, todos cedem ao desejo de grossura e apontam o dedo: "Tudo isto é filigrana, rendas finas, viadagem!".
Acende-se o velho rancor dos burros contra os cultos, dos feios contra os bonitos. E o velho espantalho da estupidez nacional se recompõe como um Frankenstein revivido. E se juntam os trapos da velha ordem nacional.
O estatismo contra o capital moderno, o personalismo contra o espírito público, o rural contra o urbano, o capricho contra o método, a aventura contra o trabalho, o saber abstrato das capas pretas contra a práxis de um saber moderno.
E se paralisa a "grande revolução brasileiro" sob o escândalo da banca internacional. Mais décadas de miséria e estupidez no paraíso tropical.
E quem poderá surgir, como um Fortimbrás populista com todos esses balaios nas costas? O mundo italiano e lusitano de Quércia e Zé Português. Contra o MIT, Harvard e Claude Lefort, o doce populismo caipira com dois bilhões de dólares de capital.
Ficaremos entre dois populismos em luta. Zé Português contra Chico Vigilante e os xiitas da Albânia. E a máquina do mundo se fecha e se recompõe o velho Brasil colonial.

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