São Paulo, terça-feira, 29 de março de 1994
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Filas malditas

JOSÉ SERRA

No Brasil, no final do século 20, ainda existem cidadãos de primeira e segunda classes. É o que demonstram centenas de cartas que tenho recebido nos últimos meses. Cidadãos de segunda classe, por exemplo, são os que precisam matricular os filhos numa escola pública, operar-se num hospital do Estado ou simplesmente requerer ao INSS as aposentadorias a que têm direito.
Considere-se, por exemplo, o atendimento do INSS. Um trabalhador morre prematuramente e a viúva precisa da pensão assegurada em lei. Surge a primeira dificuldades: é preciso requerer o benefício e as filas são enormes em qualquer posto do INSS. Precisando desesperadamente da pensão, a viúva amargurada chega ao posto de madrugada, ou paga para alguém guardar um lugar na fila. E, muitas vezes, depois de horas de espera, é informada de que não é mais possível atendê-la e precisa retornar.
Tentando evitar incidentes, alguns postos distribuem senhas –20 por dia! Outros marcam o atendimento em agenda: para dois, três meses depois! A espera apenas assume uma forma nova, substituindo-se as filas espaciais por filas temporais. E quando a viúva finalmente é atendida, pode ser surpreendida com a segunda desventura: é informada de que precisa voltar com novos documentos.
Concluída a via sacra de providências, resta a terceira desventura: esperar que o benefício comece a ser pago. Essa espera ultrapassa, frequentemente, um ou dois anos. Já recebi cartas de pessoas aflitas que aguardavam os benefícios há mais de sete anos. O que acontece com essas pessoas durante tanto tempo? A maioria tem de viver em meio a enormes privações e à custa de precárias ajudas de familiares, quando os têm. Muitas chegam a deixar a casa em que moravam, por falta de recursos para pagar o aluguel.
É realmente intolerável que direitos indiscutíveis como esses continuem a ser negados a pessoas pobres e em dificuldade pela lerdeza e ineficiência dos serviços públicos de atendimento. É urgente simplificar procedimentos, informatizar processos, reestruturar órgãos, qualificar servidores.
Tais providências não exigem investimentos tão altos quanto muitos imaginam e precisam integrar qualquer programa de governo para o Brasil e para os Estados. Não dependem de preferências partidárias ou ideológicas. Mesmo para os que defendem uma Previdência privada complementar à Previdência básica, ou uma rede privada de escolas e hospitais ao lado das instituições públicas, é indiscutível que tem de haver uma Previdência básica pública e uma rede pública de ensino e saúde de boa qualidade.
Elas existem em todos os países ricos. Nem Margaret Thatcher privatizou o sistema público de saúde da Inglaterra. É claro que esses serviços públicos são ainda mais necessários num país como o Brasil, menos desenvolvido e com um grau de desigualdade social mais acentuado. Do contrário, boa parte dos trabalhadores brasileiros continuarão a ser tratados pelo próprio Estado como cidadãos de segunda classe, cujos direitos básicos à saúde, à Previdência ou à cultura só existem nos papéis já amarelecidos da Constituição e das leis trabalhistas.

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