São Paulo, quinta-feira, 31 de março de 1994
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A dinâmica e o legado de 64

LUCIANO MARTINS

A persistência até hoje de uma polaridade (golpe/revolução) para designar o que ocorreu em 64 não se explica apenas pela função valorativa (crítica ou laudatória, conforme o caso) que reveste cada um desses termos. Antes, parece indicar ainda uma dificuldade conceitual para entender a natureza da crise do início dos anos 60 e a arregimentação política que ela gerou.
Os grandes investimentos realizados no governo JK, que mudaram o perfil da economia, haviam sido possíveis graças ao concurso do capital estrangeiro e do financiamento estatal. Mas terminada a montagem da indústria de bens de consumo durável e a expansão dos setores de infra-estrutura, já eram outras as condições existentes.
De um lado, capital e financiamento estrangeiros se retraíram e, de outro, a utilização de recursos públicos não só já se havia tornado inflacionária como a disponibilidade desses recursos diminuiu consideravelmente, seja pela insensatez que foi a construção de Brasília, seja pelo desarmamento fiscal ocorrido durante o governo Janio Quadros (instrução 204). Estava posta, portanto, a questão do financiamento do desenvolvimento, como condição para a continuidade do processo.
Socialmente, os rápidos deslocamentos na posição relativa ocupada por estratos situados nas esferas média e superior do universo social geraram tensões sociais e inquietações latentes. A inflação e a queda no ritmo de crescimento potencializaram essas tensões e geraram um forte sentimento de insegurança quanto às perspectivas de futuro para as classes proprietárias e médias em ascensão.
Ao mesmo tempo, no outro extremo do espectro social criava-se a difusa e frustradora percepção de que os prometidos efeitos do progresso gerado pelos "50 anos em cinco" não se propagavam para as camadas inferiores da sociedade. Até porque os bens de alto valor unitário produzidos pela nova indústria conflitavam com o perfil de distribuição de renda então existente.
A resolução dessa crise socioeconômica se apresentava (ou era assim percebida) como um dilema: ampliar o mercado de consumo através de reformas sociais, de modo a adequá-lo à nova estrutura produtiva, ou estratificá-lo deliberadamente, de forma a circunscrever às esferas superiores e médias da distribuição da renda a demanda efetiva.
O Plano Trienal (1963) foi uma tentativa de solucionar o dilema. Seu fracasso parece demonstrar (supondo que ele fosse economicamente viável) que já não haviam mais condições políticas para resolver o problema por meio de uma solução conciliatória.
É que a exacerbação social já se transformara em radicalização política e começava a se traduzir em crise de governabilidade. As classes proprietárias mobilizaram-se através de seus grupos de pressão (Ipes, Ibad etc.), ao mesmo tempo que as classes médias saíam às ruas nas "marchas pela família e pela propriedade". Os setores de esquerda, excitados pela Revolução Cubana, pensavam capitalizar as frustrações populares com a bandeira das reformas de base "na lei ou na marra".
Essa polarização interna, sobre a qual se projetavam os interesses da Guerra Fria, cindiu o populismo, privando-o de sua tradicional função medidadora. O governo Goulart tanto foi acusado de ceder à subversão da ordem econômica e política quanto de ser incapaz de promover as reformas sociais.
Sua fracassada tentativa de pedir o estado de sítio em outubro de 63, para fechar a brecha política, reprimindo tanto a direita quanto a esquerda, tornava claro que Goulart não mais controlava o rumo dos acontecimentos. Mais grave: os protagonistas em conflito pareciam convergir na crença da impossibilidade de resolvê-lo no quadro das instituições democráticas.
É nesse quadro de polarização e impasse político, agravado pelos motins de sargentos e marinheiros, que se dá a intervenção militar.
A evidência histórica disponível demonstra que a conspiração militar, mesmo considerando suas ramificações políticas e a ação dos bolsões militares radicais existentes desde os anos 50, articula-se não em torno da tomada do poder (na forma clássica do golpe de Estado), mas da resistência à intenção atribuída ao governo Goulart de mudar a configuração do poder: o fantasma da "república sindicalista".
O fato de a decisão dos dois generais de Minas de iniciar por conta própria as ações ofensivas ter contado com imediata cobertura civil e uma adesão militar em cascata, obrigou o núcleo decisório da conspiração (general Castello Branco) a passar à iniciativa para não perder o controle dos acontecimentos.
Essa circunstância possibilitou aos militares reivindicarem para si, com função legitimadora, o papel de intérpretes de um amplo sentimento existente na sociedade. O que denominaram de "revolução" serviu para justificar sua permanência no poder e, em seguida, para redefinir os suportes sociais e políticos que lhes permitiram relançar o processo de desenvolvimento em outras bases.
Nesse sentido, 64 não foi nem um "golpe" nem uma "revolução". Seria, com mais propriedade, uma "contra-revolução preventiva". Muito embora seja importante assinalar que tanto os temores que alimentavam a inquietação social conservadora quanto as esperanças que animavam a retórica radical dos setores de esquerda se baseavam numa falsa percepção da realidade e da correlação de forças existente. A ausência de resistência e a facilidade com que se realizou a tomada do poder constituiu uma enorme surpresa para ambos os lados.
Os recursos utilizados pelos militares para institucionalizar o regime autoritário e a direção impressa ao processo econômico é que vão, em planos diferentes, criar novas realidades no país e constituir o legado de 64.
O legado social e econômico é contraditório. De um lado, é inegável que houve uma extraordinária expansão e integração da estrutura produtiva. De outro, o irresponsável endividamento interno e externo e o descaso pelas desigualdades sociais criaram entraves para o equilíbrio social e econômico do país.
Já o legado político é fortemente negativo. O arbítrio, o desrespeito aos direitos civis, a desmoralização do Direito e da Justiça como princípios de organização social, a nefanda prática da tortura etc. banalizaram a violência na sociedade e corromperam a noção de cidadania. Ao mesmo tempo, a introdução do princípio da irresponsabilidade política dos governantes face aos governados e as contínuas desorganizações da estrutura partidária deixaram graves sequelas para a reconstrução democrática.
Houve quem entendesse que o advento nos anos 60 desses regimes burocrático-autoritários modernizantes na América Latina correspondiam a uma "necessidade" do aprofundamento do capitalismo na região. José Serra, no final dos anos 70, fez uma crítica devastadora dessa tese no que diz respeito ao Brasil. E se é inegável que, sob o regime autoritário, ocorreu uma generalização sem precedentes do "ethos" capitalista no país, nada autoriza afirmar a existência de uma relação causal entre esses dois fenômenos. É provável que ainda se tenha que esperar algum tempo para que desvendar o verdadeiro significado histórico de 64.

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