São Paulo, sexta-feira, 1 de abril de 1994
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"Sorgo Vermelho" desnuda a velha China

LEON CAKOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em fevereiro de 1988 o Festival de Berlim oferecia uma seleção que hoje desperta curiosidade arqueológica ao ser lembrada a pretexto do relançamento do seu vencedor, "Sorgo Vermelho", filme chinês do estreante Zhang Yimou. Ele era autobiográfico já no seu filme de estréia. O seu jeito melodramático parece também disfarçar uma inspiração tirada do obscurantismo chinês que promove execrações públicas de perseguidos políticos e criminosos comuns com a prática da autocrítica.
Os principais filmes da seleção daquele ano, como o chinês, tiravam seus heróis do passado. Ou eram do passado, com toda a força de expressão. Foi o caso de "A Comissária", do moscovita Aleksandr Askoldov, desovado pela censura soviética depois de 11 anos de banimento. Filme chinês e filme soviético começavam nos anos 20.
Fechando o círculo, o filme americano do ano –"O Império do Sol", de Steven Spielberg– começava do ponto em que terminava "Sorgo Vermelho", nos anos 40, com a invasão da China pelo império nipônico. Liberado, "A Comissária", sobre os excessos do comunismo na guerra civil, prenunciava-se o fim do império soviético. Spielberg pasteurizava a violência da guerra, a invasão japonesa e o milenar atraso social da China para se ater nas aventuras de um menino anglo-saxão vítima da desordem oriental.
Zhang Yimou desnuda a sua velha China ao mesmo tempo que oferece os melhores e mais impressionantes artifícios visuais para cobrí-la com uma plástica pirotécnica e a sedução de muitas imagens elaboradas até a exaustão. O símbolo perfeito desta sua inteligente regra chama-se Gong Li, sua mulher, sua atriz e também a musa de todos os seus filmes seguintes.
Gong Li serve a sua jovem beleza para interpretar a bisavó do cineasta, num tempo em que ela foi dada em casamento a um comerciante leproso em troca de um asno. Chocante, não é? Mas esta é a China dos anos 20, revisitada com as técnicas e os recursos talentosos dos nossos dias. Um modelo de cinema para exportação que a chamada Quinta Geração de cineastas chineses desenvolveu e aprimorou até culminar em "Adeus minha Concubina", de Chen Kaige, colega de faculdade de Yimou.
Quinta geração porque essa foi a primeira turma a se formar depois da reabertura da escola de cinema com o declínio do maoísmo e de sua revolução cultural. Um bom negócio desde que continue sob o controle do Estado. Tanto é que um de seus melhores produtos da atual temporada, "O Papagaio Azul", de Tian Zhuangzhuang, sobre o comunismo na China de 1953 a 1967, foi interditado ainda na fase de montagem. O impressionante material acabou sendo contrabandeado para Hong Kong e, desde o ano passado, percorre o mundo através de festivais.
O cinema chinês está em evidência mas o filão passadista com limites críticos, por mais riqueza visual que contenha, pode cansar. Aparentemente o lobby dos "politicamente corretos" conseguiu desestimular o Oscar de melhor filme estrangeiro a "Adeus minha Concubina" com a insistente campanha na imprensa americana sobre desrespeito aos direitos humanos na China. Rever "Sorgo Vermelho" seis anos depois da grande onda do cinema chinês pede novas leituras. Estamos diante de um modelo de cinema que soube persuadir pela beleza. A verdade, para filmes assim, é uma questão de estilo.

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