São Paulo, sábado, 2 de abril de 1994
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Meus trinta dinheiros

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Dos gregos a Gerald Thomas, todos me devem notável contribuição ao teatro universal. Sou que nem aquele cara que diariamente ganhava 500 cruzeiros porque não cuspia no elevador de seu prédio. Havia a placa: "É proibido cuspir. Multa: 500 cruzeiros". Ele não cuspia.
Ano passado, neste mesmo espaço, lembrei minha única experiência teatral. Lá no seminário, padre Tapajós sempre montava uma vida, paixão e morte de Cristo bastante revolucionária no conteúdo e na forma. Cristo não amaldiçoava a figueira brava que lhe negara os frutos: já era um prenúncio da onda ecológica e nem o Roberto D'Ávila era ainda secretário do Meio-Ambiente.
Quanto à forma, a audácia do padre Tapajós ficou na armação do elenco. Seria como botar o Jô Soares no lugar do Cafu, o Tim Maia no lugar de Bebeto e o frei Damião no de Romário. Fui escalado para Judas, cujo papel se resumia à comovente cena da traição.
Naquela época eu tinha grave problema de fala, trocava o "ge" pelo "de", ficou famoso o dia em que, orgulhosamente, declarei que meu pai, visitando a dispensa do Sodalício da Sacra Família, dera um "fogão" e a madre superiora gostou muito.
Contei ano passado e conto novamente: fui dar o beijo no Salvador e minha barba prendeu-se à do Redentor. Logo entraram os esbirros de Caifás para açoitar o Nazareno imberbe e o pano fechou abruptamente. Na confusão, armaram o túmulo de José Arimatéia antes do calvário. O resultado foi assombroso: o Salvador ia sendo enterrado antes de ter morrido. A cena da ressurreição e da subida aos céus era complicada demais e foi suprimida. Padre Tapajós, aos berros, mandou que o coro cantasse o hino pascal da "Cavallaria Rusticana" –e eu fiquei, com duas barbas penduradas no queixo, esperando que alguém me pagasse os 30 dinheiros que constavam do texto da peça e das Sacras Escrituras. Espero até hoje. Toda a Semana Santa cobro a dívida que me é devida e, como outras que acumulei por aí, nunca me é paga.

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