São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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Para as eleições, tome Bomfim

LUÍS NASSIF

Personagem singular da vida intelectual do início do século, o médico sergipano Manoel Bomfim revolucionou a sociologia brasileira, ao desmistificar as interpretações racistas para o subdesenvolvimento nacional.
Especialistas em psicologia sustentam que, na década de 20, ele havia antecipado em alguns anos as grandes descobertas da escola russa. Em 1903, em seu livro "A América Latina, Males de Origem", Bomfim produziu o mais devastador retrato do Estado brasileiro, identificando características e personagens que, 90 anos depois, estão mais vivos do que nunca.
Esta é a razão de, sendo homem de várias visões, ter sido varrido da história oficial de um país de cegos. No longínquo 1903, Bomfim já havia conseguido ver o rei nú.
Nos últimos tempos, intelectuais do porte do professor Antônio Cândido e o Departamento de Psicologia da PUC de São Paulo preocupam-se em recuperar sua memória. Bomfim merece ser transformado em um símbolo da grande luta da cidadania contra o modelo de Estado brasileiro. Principalmente neste momento, em que parte da opinião pública se prepara mais uma vez para ser iludida pelas próximas campanhas eleitorais.
Com base na leitura de Bomfim, desconfiem-se dos discursos progressistas ou meramente populistas dos homens que se dizem oposição. A lógica nacional sugere que, depois da vitória, ocorrem mudanças sensíveis em seu comportamento.
"Mesmo os mais ousados entre os homens públicos, os mais revolucionários, são tão conservadores como os conservadores de ofício. (...) Amanhã será tudo como ontem (...) Parece um paradoxo, tão estranho é: pouco importa a luta, os conflitos, levantes e revoluções que tenham trazido o indivíduo ao poder: uma vez ali, 'sentindo as responsabilidades do governo', o verdadeiro homem se revela: tudo parou, o revolucionário de ontem desaparece, as gentes ponderadas e graves podem se aproximar."
Bomfim descreve magistralmente um velho discurso de novos vitoriosos, visando legitimar, via voto popular, seus interesses mais mesquinhos. "A República trouxe a substituição da 'soberania de direito divino' pela 'soberania do povo', mero engodo para preservar o mesmo estilo de poder, agora manobrado pelas novas classes vitoriosas. 'O poder é o poder' diz um dos tonitruantes estadistas sul-americanos e a definição traduz fielmente a noção que eles têm da investidura governamental –exercício do mando, gozo do poder."
Orçamento lá e cá
Sua análise do Orçamento de 1903 é acachapante –e chocante, quando se constata há quanto tempo a classe política perdeu a noção de nação. "É monstruoso que, num país novo, onde toda a educação intelectual está por fazer (...) para um Orçamento de 300 mil contos, reservem-se 73 mil contos para a força pública e apenas 3.200 contos para tudo o mais que interessa à vida intelectual –ensino, bibliotecas, museus, escolas especiais", criticava. "Gastam-se 73 mil contos com uma defesa material do Estado: não se despende um tostão no intuito de melhorar as sortes destas populações, que nascem infelizes, vivem sofredoras e morrem miseráveis."
Bomfim não defendia nem o Estado liberal, nem o paternalista. "Não se trata de colocar o Estado ao lado de cada indivíduo, dando uma profissão a toda gente: mas quer-se que ele cumpra seu dever –promovendo os meios gerais que facilitem a todos: o poder trabalhar e ser feliz."
Quando se reclama do poder público aquilo que é seu estrito dever, diz Bomfim, "eles respondem com solenes 'tiradas' sobre a iniciativa particular, suas miríficas virtudes e o muito que lhe deve a civilização e o progresso das nações anglo-saxônicas".
Bomfim rebate esse escapismo, lembrando que nos EUA (do início do século), o Estado "sem entorpecer a atividade individual, sem tiranizar ninguém, prepara elementos eficazes de progresso", diz ele, "(...) é porque já se pode verificar a eficácia e as vantagens da instrução popular, que os Carnegies trazem o supérfluo dos seus orçamentos como dádiva para a criação de outras escolas e instalação de novas bibliotecas".
Ponto central desse jogo de dominação é o que ele denomina de "unicidade" –o modelo centralizador, através do qual as metrópoles (as capitais) estendem seu poder sobre as colônias (os Estados).
Não se apostem as fichas nas eleições. O único caminho de modernização e libertação definitiva do Estado será quando a cidadania lograr tomar em suas mãos a definição das regras do jogo político, através de uma Constituinte exclusiva.

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