São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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Em defesa do homem branco

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em defesa do homem branco
Há mais de dez anos, algumas universidades norte-americanas adotaram uma política, chamada Ação Afirmativa, cuja meta era atingir, entre os alunos (e, depois entre os professores), uma distribuição racial, étnica, sexual condizente com a do resto da sociedade. Para tanto, estabeleceram-se quotas mínimas - de negros, hispânicos, mulheres - e, consequentemente, mas sem que fosse declarado, um limite máximo de homens brancos e orientais de ambos os sexos. Critérios acadêmicos de aprovação ou contratação foram parcialmente substituídos (ou qualificados) por considerações como a cor da pele e o sexo do candidato.
Esse tratamento se estendeu a âmbitos que iam do incentivo a fraternidades inteiramente negras e proscrição das exclusivamente brancas à vigilância do linguajar sexista masculino mas não de sua contrapartida feminina. Tratava-se de corrigir injustiças históricas. Os beneficiários do novo sistema descobriram inclusive o autor exclusivo destas: o "White European Male", ou seja, Homem Europeu Branco.
Sexista (e estuprador), racista (e linchador), homofóbico (e discriminador), responsável pela escravidão (mas não pela abolição), criador da bomba de hidrogênio (mas não dos antibióticos), inventor do capitalismo (mas não da sociedade de consumo cujos bens todos cobiçam), esse monstro ou demônio só faz jus à execração absoluta. Nem sequer ter tido certas idéias - a democracia ou os direitos humanos - pode redimi-lo. Parece maniqueísta, limitada e acrítica essa visão? Bom, ela mesma se originou em boa parte na mente de alguns homens brancos e europeus. E (se bem que espero estar enganado) a difusão de tal demonologia constitui até o momento o resultado mais conspícuo de algo tão bem-intencionado quanto a Ação Afirmativa.
Pensando nesta (e sublinhando que falava dos EUA) teci no meu artigo sobre as "minorias" (assim denominadas num título que não é meu) algumas considerações sobre a necessidade da separação clara entre as esferas privada e pública na democracia e sobre o fato de não ser esta apanágio de nenhum grupo, mas uma escolha pensada. As observações que me fez Marta Suplicy são inteiramente justas e só me resta, além de agradecê-las, desfazer alguns mal-entendidos. No que diz respeito a Fernando Conceição, permito-me não tanto contradizê-las quanto apresentar dúvidas que pertencem menos a mim do que a lógica do seu argumento.
Assim, em nenhum momento, abordando o estupro, eu disse que era um problema como qualquer outro de agressão, mas apenas que se tratava, no plano estritamente físico, de seu equivalente (se excluírmos a gravidez e a Aids). Considero inquestionáveis suas consequências psicológicas; por isso não as mencionei. Referi-me não a chefes que ameaçam subalternas para obter seus "favores" ou médicos que se aproveitam de suas pacientes, mas a estudantes que podem até mesmo ser expulsos de una universidade por terem passado uma cantada na colega.
Não revitalizei o estupro: quem o fez foi a liberalização dos costumes que, de destruidor de honra, transformou-o num crime contra a liberdade sexual da mulher, algo diferente e menos cósmico. Critiquei, isto sim, a propensão de certa militância feminista a caracterizar tudo como estupro e a "linchar" automaticamente seu réu, antes do julgamento, com a justificativa de que, "nessa questão, as mulheres raramente mentem".
Quanto à escravidão, ninguém em sã consciência pensaria em negar sua existência passada nem, segundo uma perspectiva democrática e defensora dos direitos humanos (limitada, portanto, no tempo e no espaço), deixaria de condenar a abominação que ela representa. Mas a reivindicação de uma indenização monetária levanta certas questões.
A miséria em que a maioria esmagadora dos negros (e mestiços) se encontra no Brasil é resultado objetivo da escravidão e eles são, indiscutivelmente, suas vítimas. Não o são, porém, da mesma maneira nem no mesmo grau que seus ancestrais escravizados. Uma indenização não é descabida. Mas quanto? E para quem? O filho livre de um escravo merece tanto quanto seu pai cativo? E o neto, bisneto? E quem é apenas 1/2 ou 1/4 negro? Os bisnetos de quem foi escravo por uma geração devem receber a mesma quantia que os descendentes de uma família que amargurou três séculos de cativeiro?
Perguntas assumidamente cínicas como estas se impõem na medida em que Fernando Conceição invocou o precedente das indenizações pagas pela Alemanha (só a ocidental; a comunista não pagou nada) a alguns judeus. Questionários semelhantes foram apresentados, pelos tribunais alemães, aos judeus que, vítimas diretas, pediram reparações: seus processos, julgados em geral caso a caso, não são o precedente ideal para uma indenização coletiva.
Outra indagação que se coloca é: quem deve pagá-las? As classes, tribos ou nações dominantes africanas, que participaram em grande escala do projeto escravocrata? Pouco provável. Os brancos? Suícos e suecos alegarão nada ter a ver com o assunto, apontando para os portugueses, que acusarão suas classes dominantes, que não se responsabilizarão pelos atos de seus ancestrais. E estes, se pudessem falar, diriam que traficar e explorar escravos não era um crime na época, nem atentava contra a dignidade humana, conceito que não tinha sido inteiramente elaborado. Lembrariam também que já compraram, nas costas da África, os negros escravizados por outros negros.
Estes por sua vez, estranhariam a acusação de estar vendendo seus irmãos, assinalando que os vendidos não pertenciam à sua tribo ou nação, da mesma forma, aliás, como fariam os vikings escandinavos que, entre outras mercadorias, comerciavam brancos, sobretudo eslavos, com o Islã - que não condenava a escravidão (Maomé tinha escravos), como tampouco o faziam o cristianismo e o judaísmo. Convém reconhecer que a originalidade do Ocidente é ter abolido a instituição milenar do trabalho escravo (observação que não vale para a URSS).
Fernando Conceição sugere que a União deveria arcar com a conta. Sucede que a União é, pelo menos idealmente, o conjunto de todos os cidadãos brancos, descendentes ou não de escravocratas, negros, mestiços, orientais... A indenização equivaleria, então, a uma redistribuição de renda. O que, no capitalismo, seria impraticável, pois o salário corresponde não a uma parte da riqueza produzida, mas ao valor do trabalho no mercado. No socialismo, onde cada um recebesse segundo suas necessidades, o descendente do latinfundiário e o do escravo, sem reparações, teriam direitos iguais de acesso ao patrimônio coletivizado.
Como compensar uma injustiça antiga, cujos efeitos cruéis alcançam nossos dias? Não creio que haja resposta simples. A democracia pode confinar as diferenças raciais, étnicas, sexuais à esfera privada, garantindo, na pública, a igualdade de todos. Em compensação, todos, passando a ter os mesmos direitos, só respondem por suas ações individuais. Podem-se herdar, de outras gerações, propriedades e dívidas relativas a elas mas não a direitos ou obrigações diferenciados. E, muito menos, culpas.
Além disso, no Brasil, onde nem um atropelado pode esperar qualquer compensação - alguém acredita seriamente na viabilidade da indenização discutida? Não haverá outras prioridades como, por exemplo, tornar mais reais os direitos até agora bastante formais dos cidadãos brasileiros de pele negra? E já que a Ação Afirmativa está em pauta, ela seguramente merece ser considerada neste país, só que à luz dos prós e contras da experiência americana e, o que seria inédito entre nós, pensando-se antes na persuasão da sociedade civil do que na sua imposição através do Estado.

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