São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ionesco sereno

SÁBATO MAGALDI

Era um choque extraordinário. Estava-se acostumado, no teatro, à crítica realista das convenções, dos valores caducos, e Ionesco inoculou de súbito, no palco, o insólito, subvertendo os métodos tradicionais.
A Cantora Careca pôs em cena, em 1950, dois casais de ingleses, e num deles o marido dizia à mulher que tinha a impressão de conhecê-la antes. As coincidências poderiam ser fortuitas, mas uma não deixava margem a dúvidas: "Então, dormimos na mesma cama, portanto devemos ser marido e mulher!" Desmascarava-se a incomunicabilidade –e o teatro solidificava uma nova corrente, que uns consideravam de vanguarda, e Martin Esslin cunhou como do absurdo.
Se Camus, por exemplo, retratou o absurdo existencial, em "O Mal-entendido" ou "Calígula", sua linguagem obedecia à lógica estrita. Já Ionesco revelou-o a partir da própria linguagem e suas peças se multiplicaram em situações imprevisíveis, apelando para uma imaginação sem limites. Em cada novo texto irrompia um elemento desconcertante, capaz de abalar nossas repousadas certezas.
Veja-se "A Lição". Ionesco chamou-a de drama cômico e o diálogo entre professor e aluna é muito divertido. Da aritmética passa-se à filologia e a aluna se queixa de dor de dente. O riso se converte em apreensão e acaba por desembocar em desespero. Em progressão alógica observa-se que "A aritmética leva à filologia, e a filologia ao crime".
Todas as situações conduzem a um beco sem saída. Em "As Cadeiras", um casal de velhos as dispõe numa sala para transmitir uma mensagem. Reúne-se, afinal, a assembléia de pessoas invisíveis, e quando o orador surge para dizer o testamento, vê-se que ele é mudo e surdo. Os velhos matam-se, pulando da janela.
Produto do após-guerra, cheio de feridas que não cicatrizaram, a dramaturgia de Ionesco reflete profundo pessimismo. Nos escritos teóricos de "Notes et contre-notes", pode-se detectar a origem remota desse sentimento: "Sempre fui obcecado pela morte. Desde a idade de quatro anos, desde que eu soube que ia morrer, a angústia não me deixou mais. É como se eu tivesse compreendido de repente que não havia nada a fazer para escapar dela e que não havia nada mais a fazer na vida. Por outro lado, sempre tive a impressão de uma impossibilidade de comunicar, de um isolamento, de um cerco; escrevo também para gritar meu medo de morrer, minha humilhação de morrer. Não é absurdo viver para morrer, é assim. Essas angústias não podem ser tachadas de burguesas ou antiburguesas, elas vêm de muito longe".
O desespero ionesquiano não era, porém, paralisante. Ele nunca deixou de denunciar as imposturas, onde quer que elas se apresentassem. "Os Rinocerontes" nasceu de um propósito de sátira ao nazismo, ampliada para converter-se em condenação das histerias coletivas. Os homens, tomados pela massificação, se transformam paulatinamente em rinocerontes. O procedimento dramatúrgico lembra o da proliferação das cadeiras ou, em "O Novo Inquilino", dos móveis. Sozinho no mundo "rinocerizado", Béranger grita o seu inconformismo: "Eu sou o último homem, e permanecerei homem até o fim! Não capitulo!"
Individualista intransigente, Ionesco passou por porta-voz de uma filosofia pequeno-burguesa, normalmente assimilável ao pensamento de direita. Não era esse, sem dúvida, o seu caso. Ele não admitia a submissão às palavras de ordem embrutecedoras –foi sempre fiel às prerrogativas irredutíveis do ser humano. Mesmo que o seu teatro, em peças como "O Rei Está Morrendo", "Assassino Sem Pagamento" e "O Pedestre do Ar", se concentrasse sempre mais no diálogo com a morte.
A irreverência sadia, a atrapalhação de "clown" assustado, a dificuldade de relacionar-se e ao mesmo tempo a extrema gentileza são o esboço de retrato do homem Ionesco.
Com medo de avião, ao chegar a primeira vez a São Paulo pediu logo um uísque. Quase saiu correndo do estúdio, quando foi obrigado a dar uma entrevista na televisão. Programara-se uma conferência dele na embaixada francesa, que ainda funcionava no Rio de Janeiro, e foi uma semana de dúvida: Vou? Não vou? Acabou não indo e transmitiu-se o aviso à última hora, criando transtornos vários. Ele preferiu simplesmente continuar bebendo uísque no bar do hotel, longe do mundo oficial.
Ionesco viera ao Brasil, em 1960, a convite do Itamaraty, para emitir uma definição de vanguarda sobre Brasília, depois que Malraux a consagrou em frase lapidar. Como repórter, eu tinha vergonha de perguntar o que ele achou da nova capital, mas uma bela hora precisaria ouvir a resposta. Ionesco foi sucinto: "Apertei o botão (da privada), não vinha água e mudei de quarto. Repeti a operação e nada aconteceu. Pensei que seria melhor sucedido no terceiro quarto. Inútil. Alora, Brasília, pour noi, c'est de la merde de toutes les coulers". Infelizmente, muitos não entenderam a "boutade". Não teria sentido esperar outra explicação de um humorista. Gostar do país ele gostou, porque foi reincidente: acompanhou, em 1970, a excursão da Cia. Jacques Mauclair, e, em 1982, veio assistir à estréia de "O Rei Está Morrendo".
A moda, implacável também no teatro, fez Ionesco ceder o setor dramatúrgico a Beckett, que por sua vez o transferiu a Brecht, hoje um tanto esquecido por graça de Heiner Muller, Thomas Bernhardt e outros nomes mais jovens. Shakespeare, seu grande modelo, esperou dois séculos para ser considerado o maior autor do mundo. Aos 81 anos, a morte finalmente interrompeu o diálogo com Ionesco, e ele está pronto para assumir a serenidade dos clássicos.

Texto Anterior: Páscoa
Próximo Texto: Dimenstein; Caderno 64; Nassif; Projeto Tóquio; Abuso sexual; Maluf; Congresso; Revisão; Atendimento; Remédios; Emerson; Campanha; escolas; Placas; Sindicatos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.