São Paulo, quinta-feira, 7 de abril de 1994
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Carta de intenções

O discurso de posse do embaixador Rubens Ricupero como ministro da Fazenda é uma peça de qualidade e densidade, características que vinham se tornando raras no Brasil. Ainda assim, contém passagens que merecem reparos.
O aspecto mais positivo do discurso é o de que, embora seu tempo no ministério seja curtíssimo (apenas nove meses), nem por isso Ricupero limitou-se às questões imediatas agora colocadas sob sua responsabilidade. Ao contrário, ousou esboçar as linhas gerais de um modelo para o Brasil do futuro.
Não um modelo pronto e acabado, mas, ao menos, os conceitos essenciais em torno dos quais deve-se tentar a reconstrução de uma nação esgarçada pelas dificuldades econômicas e políticas e especialmente por uma situação social aviltante.
Sob esse ponto de vista, é merecedor de aplauso o fato de Ricupero detectar qual é "o problema central do mundo e do Brasil, jamais resolvido pelas economias socialistas nem pelas de mercado: como desenhar um sistema produtivo que assegure a prosperidade sem exclusões, onde o pleno emprego seja a situação normal, que não necessite conviver com ciclos de desemprego elevado e desumano".
Esta Folha fica muito à vontade, de resto, para apoiar essa observação, à medida que ponto de vista muito parecido foi externado no editorial "E a Terra era redonda", publicado na última terça-feira.
É igualmente elogiável o fato de o novo ministro sepultar o conceito de estabilidade da economia como um fim em si mesmo. Apenas mentes ensandecidas poderiam ser contra a estabilização econômica que o país persegue há tanto tempo.
Mas só os conformistas e os medíocres poderiam aceitar que, alcançada a estabilidade, a tarefa estaria concluída. Ricupero não se incluiu entre os conformistas, ao menos na retórica, ao dizer que "a estabilidade não é um fim em si mesmo, mas a condição para o crescimento durável". Mais ainda, o ministro chegou a desenhar um tripé para um projeto de Brasil: "Uma economia em crescimento sustentado, mudanças sociais aceleradas e uma plena incorporação dos custos ecológicos para melhorar a eficiência e a qualidade de vida".
Ricupero acerta de novo ao atacar uma das questões centrais que precisam ser equacionadas para a indispensável reorganização do Estado. "Restabelecer a dignidade da função pública e rejuvenescer o Estado federal", como propõe o ministro da Fazenda, é não só necessário como urgente.
O caminho apontado também parece adequado. "Muita coisa pode e deve ser repassada aos Estados e municípios através da descentralização ou à iniciativa empresarial, mediante vigorosa privatização", defende Ricupero. O binônimo descentralização-privatização, ainda mais quando acompanhado do termo "vigoroso", é irrepreensível. Cabe ressalvar, em todo caso, que, no governo Itamar, a privatização esteve longe de ser vigorosa.
A lógica a sustentar a privatização surge, cristalina, no discurso: como "o Estado perdeu a capacidade de poupar e vem há muito se endividando para cobrir despesas de custeio, somente a privatização poderá permitir que os escassos recursos disponíveis se destinem às áreas essenciais como educação, saúde, saneamento, segurança".
É importante lembrar, a propósito, que, na campanha presidencial anterior, em 89, esta Folha publicou uma série de reportagens cuja rubrica ("Menos governo, menos miséria") sintetizava essa idéia. Pena que, transcorridos cinco anos, a tese tenha de ser repetida porque nada se fez nessa direção.
Há, no entanto, passagens que não podem ficar sem sérios reparos. O ministro confundiu a estabilização com o Plano FHC, que, aliás, ele prefere que seja chamado de PPB ou "plano do povo brasileiro". Que a estabilização é uma tarefa de todos, não resta dúvida. Enquanto a sociedade não se convencer de que ela também é responsável, dificilmente se atingirá a estabilidade.
Mas assume características algo imperiais a exigência do ministro de que "cada brasileiro, sem exceção, assuma o plano como coisa sua, como responsabilidade própria, pessoal e intransferível".
O plano econômico, embora tenha sido elaborado de uma forma bem mais aberta na comparação com os anteriores, nem por isso deixa de ser obra de um pequeno grupo de especialistas. À sociedade está cabendo apenas adaptar-se a ele, com maiores ou menores traumas, conforme a situação peculiar de cada pessoa ou setor da economia. Exigir a adesão incondicional equivale a decretar que, fora do Plano FHC ou PPB, não há salvação, o que é altamente questionável, para dizer o mínimo.
Da mesma forma, erra o ministro na atribuição de culpas pelo estado de inflação crônica que devasta o país. Ao dizer que o brasileiro é o "povo de maior indulgência com a inflação", Ricupero não deixa de ter certa razão, ante o silêncio da sociedade sobre o fenômeno. Mas, com essa frase, o ministro universaliza as culpas, o que é a maneira mais simples de diluir as verdadeiras responsabilidades e ocultar os verdadeiros responsáveis.
Só uma sociedade masoquista contribuiria, intencionalmente, para instaurar e manter uma situação de superinflação. A inflação brasileira está longe de ser culpa de todos por igual. Ela é, acima de tudo, de responsabilidade do próprio Estado, ainda que a omissão da sociedade tenha sua parcela de culpa. Sucessivos chefes de governo estimularam ou não coibiram o descontrole das contas públicas, combustível maior da fogueira em que arderam várias moedas nacionais.
Mas é culpa também de uma elite insensível, que ou lucra com a inflação ou, no mínimo, se resguarda de seus efeitos deletérios porque tem à sua disposição mecanismos defensivos. A maioria da população paga a conta, só em parte devida a seu silêncio. É injusto, portanto, responsabilizar a todos igualmente.
No balanço geral, de todo modo, o discurso é positivo. As prioridades colocadas são essencialmente corretas e os conceitos, estruturais ou conjunturais, são apropriados. Mas não basta. O próprio discurso lembra que, nove anos atrás, o presidente Tancredo Neves cunhou a expressão "é proibido gastar", que Ricupero agora retoma como uma espécie de lema de sua gestão.
A lembrança é ilustrativa do enorme fosso que tem existido entre a palavra dos governantes e a prática dos governos. Se Ricupero conseguir, mesmo no seu curto período de gestão, ao menos reduzir o tamanho do fosso entre a boa retórica e a má prática, já terá prestado inestimável serviço ao país.
Mas é certo que cabe também a cada brasileiro cumprir a sua parte, com o que se tornará menos distante e menos utópica a "radiosa manhã da ressurreição de um Brasil estável e próspero, justo e generoso", que o ministro encomendou a Deus. Frase por frase, melhor a que diz "ajuda-te que Deus te ajudará". Afinal, a política é essencialmente humana e, de boas intenções, o inferno está cheio.

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