São Paulo, sábado, 9 de abril de 1994
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"Measure" é uma comédia para tempos difíceis

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Measure for Measure" é como os tempos que correm. Uma comédia em que não dá para rir muito, porque logo Shakespeare entra com algum constrangimento, com um corte. Uma comédia para uma era em que até mesmo o sexo, depois da suposta revolução de 20 anos atrás, enfrenta o constrangimento maior da Aids. Em que dá para rir, mas com cuidado, com um riso quase sério.
Uma passagem da peça, que faz hoje a sua última apresentação em São Paulo, é exemplar. Isabella, a freira que acredita ter salvo o irmão da pena de morte, chega à cadeia e pergunta na entrada sobre a ordem de libertação. Avisam que o irmão acaba de ser libertado... pausa... da vida na terra.
Dá para o público rir, já que o irmão não morreu, mas Isabella não sabe e seu desespero corta imediamente o riso do público. Daí dizerem que "Measure for Measure" é uma peça difícil, uma peça problema. Não há um instante de paz, de felicidade completa em todo o espetáculo. Até o fim, quando o duque pede a mão de Isabella em casamento, não resta claro se ela aceita.
O que faz uma comédia, ao menos no tempo de Shakespeare, quando se tentou alguma classificação de suas peças, é o final feliz. Nem tanto o humor –que está presente em todos os seus textos, garantindo emprego a todos os especialistas da sua companhia– mas um, dois ou três casamentos, na última cena.
"Measure for Measure" tem três casais no final, mas nenhum deles merece lá ser dado como feliz. Há um conflito geral, que a montagem de Declan Donnellan, diretor, e Nick Ormerod, designer, buscou sublinhar. Não só na cena final, explicitando o desacordo de Isabella com o duque, ou do jovem puritano Angelo com sua Mariana, mas em cada instante em que o amor ameaça existir.
Não é uma peça fácil, "Measure for Measure". Apesar da grandeza de Isabella, um personagem que não fica atrás dos maiores entre os femininos de Shakespeare, é o duque o protagonista, o centro. Diz a tradição que teria sido um dos papéis interpretados pelo próprio Shakespeare, ainda ator.
O personagem realmente lembra Shakespeare, ao dirigir uma peça-dentro-da-peça no último ato. Uma pequena encenação, como em "Hamlet", para desmascarar publicamente um traidor. Acontece que, desta vez, o autor ou os autores parecem perder o domínio das criações. Na peça e também na peça-dentro-da-peça, os seus personagens seguem caminhos que não são o desejado.
O caminho desejado seria aquele da comédia, seria a felicidade. Ou seria, talvez, hoje em dia, o amor livre sonhado nos anos 60. Da mesma forma como os personagens de Shakespeare enfrentam algum constrangimento, que o velho dramaturgo vivia e expôs nas peças do período, também hoje há uma alegria contida.
Foi a razão, com certeza, para a escolha da peça pela companhia de Donnellan e Ormerod. Está nela tudo aquilo que eles buscam refletir dos anos 90 –e que já mostraram em "Angels in America" e "Fuente Ovejuna", essa última sobre a Inquisição. Está nela a política reacionária diante do sexo. Está nela a reflexão de um novo papel para a religião.
"Measure for Measure", como os dois diretores-artísticos da companhia Cheek by Jowl já haviam avisado, não tem nada de "As You Like It" (Como Você Quiser), outro texto shakespeariano que montaram na virada da década. Mas é a mesma direção, claramente. A mesma delicadeza que Donnellan e Ormerod tinham apresentado na peça romântica serve agora ao seu quase oposto, à negação do romantismo.
Serve para não dar chance ao romantismo. Porque ele até que se revela na montagem, mas apenas para ser negado logo em seguida. Assim é com Juliet, a jovem que espera um filho de Cláudio, ao tomar conhecimento da pena de morte que foi determinada para o amante. Ela tem alguns segundos de horror, que é tudo o que o autor e o diretor lhe permitem. Ainda assim, é emocionante.
O que acontece num só momento com a Juliet de Sheri Graubert se repete pela montagem inteira com Isabella. E garante a Anastasia Hille uma interpretação única, saltando loucamente entre a tristeza e o humor, entre as lágrimas e a alegria. Com elas, outra atriz marca a peça na voz irônica e negra de Mariana, que empolgou o público: Marianne Jean-Baptiste.
Mas nada em "Measure for Measure" é além da conta, excessivo. Cada pequena ou grande emoção surge clara, limpa, saltando do texto shakespeariano para a cena com uma simplicidade que o cenário e a iluminação, como todo o resto, parecem simbolizar. Um manto vermelho que liga o palco ao céu, na presença do duque, e uma grande mão desenhada pela luz, na ameaça da pena de morte. O peso do poder absoluto nunca foi tão leve, no palco.

Título: Measure for Measure
Autor: William Shakespeare
Diretor: Declan Donnellan
Designer: Nick Ormerod
Elenco: Stephen Boxer (duque), Adam Kotz (Angelo), Peter Needham (Pompey) e a cia. Cheek by Jowl
Quando: Hoje, às 21h, em inglês
Onde: Teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 153, tel. 288-0136)
Quanto: CR$ 2 mil e CR$ 1 mil
Sinopse: O duque de Viena deixa a cidade em poder de um puritano, Angelo, que aproveita antigas leis e manda matar Cláudio por engravidar a namorada. A irmã do condenado, Isabella, pede por sua vida e se descobre chantageada por Angelo a dormir com ele. Mas o duque, disfarçado, acompanha e desfaz os atos do puritano hipócrita.

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