São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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Operários da saúde tocam a 'cidade' HC

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

"Cidade" habitada por 10.500 funcionários, o Hospital das Clínicas abriga personagens que ficariam mais à vontade em uma epopéia do que numa casa de saúde.
Escondem-se no HC, por exemplo, artesãos capazes de construir cadeiras de rodas, móveis ou muletas, entre outros objetos utilizados por pacientes enfermos.
Em plena era da terceirização, o hospital resiste como um núcleo produtor dos mais variados bens e serviços.
Cozinheiros produzem 40 diferentes dietas, servidas todo dia nas 26 unidades do hospital. Funcionários que ganham CR$ 80 mil por mês são responsáveis pela lavagem das 12 toneladas de roupas que o hospital suja diariamente.
Infelizes ou entusiasmados pelo trabalho que fazem, esses personagens se espalham por todos os 282 mil metros quadrados do HC.
Sangue
Sorriso de orelha a orelha, Hélio Otávio da Silva, 47, há 21 anos faz coleta de sangue no HC. Desde 1984, só tira sangue de crianças.
Como os demais funcionários da coleta, Hélio trabalha sentado num banquinho. Faltam cadeiras.
Achá-lo ali, entre duas dezenas de auxilares de análises clínicas, é fácil: ao seu redor, concentram-se uma dezena de mães à espera da hora de "entregar" suas crianças.
Em 1991, uma paciente calculou que Hélio já havia tirado o sangue de 350 mil pessoas. No seu atual ritmo –60 crianças por dia–, ele deve estar próximo dos 400 mil pacientes.
Por duas vezes, o seu único filho, hoje com 3 anos, sentou-se a sua frente: "Na segunda vez, ele ameaçou chorar. Eu disse que era importante para ele fazer o exame e ele não chorou", diz.
Hélio não revela qual o seu segredo –como consegue recolher sangue de Eric, um menino de 4 anos e 10 meses que sofre de câncer, sem provocar choro ou gritaria. "Só tiro com tio Hélio. Ele não deixa doer", diz Eric.
Cozinha
Um cartaz na entrada da cozinha tenta "conquistar" os 305 funcionários que preparam as 6.000 refeições servidas todo dia no hospital: "Ninguém está vendo se você lavou as mãos. Mas você sabe..."
Por culpa dos baixos salários, a "fábrica" não consegue preencher 15 vagas, abertas há um ano.
Um cozinheiro ganhou CR$ 83 mil em fevereiro –o que dá para comprar não mais de 30 quilos de alcatra. O HC consome 1.930 quilos de carne por semana.
"Isso aqui é uma indústria. Pegamos a matéria-prima, processamos e servimos os clientes. Nossa responsabilidade é enorme", diz a diretora da "fábrica", a nutricionista Janete Maculevicius, há 36 anos no HC. "Está escrito na minha linha da vida: vou ser nutricionista do HC até morrer".
Relógios
Relojoeiro há 29 anos, Matias de Matos acerta os relógios do HC desde 1982. Entre relógios de parede e de ponto, ele calcula haver 700 aparelhos espalhados pelo hospital. "Todo dia tem relógio para consertar. Se não tem, faço manutenção preventiva".
Matias também conserta cronômetros usados em exames de laboratório. Só não conserta relógios de pulso. "O pessoal vem pedir, mas dispenso", diz.
O relojoeiro tem consciência que nenhum de seus quatro filhos seguirá sua profissão: "É uma função que está sendo extinta pelos relógios digitais", diz.
Pronto-Socorro
Joanninha Amaro da Silva entrou no HC no dia 16 de maio de 1946, como escriturária. Há 30 anos caminha com passos curtos, mas apressadíssimos, por entre as macas espalhadas pelos corredores do Pronto-Socorro.
É conhecida ali como "santa Joaninha". Arruma um pijama para um paciente, troca o vidro de soro de um outro, resolve a burocracia necessária para a internação de um recém-chegado com quadro de derrame, substitui uma enfermeira que saiu para almoçar.
Joanninha nunca almoça. O seu horário de trabalho é das 6h às 16h. Nunca vai para casa antes das 23h. Por causa de um problema nos rins, não poderia fazer esforço.
"Não tomo conhecimento. Você não pode se entregar à doença. É preciso ter força de vontade para viver", diz, aos 69 anos.
"As pessoas saudáveis não têm noção do que é um hospital. Isso choca. Dar uma vírgula de atenção para um doente, aqui, já é muito."
Vesúvio
A maior lavanderia da América do Sul processa todo dia até 12 mil quilos de lençóis, pijamas e panos usados em cirurgias. Três vezes por semana, as sete máquinas de lavar do HC, com capacidade para 200 quilos cada uma, funcionam 46 horas sem parar.
Quando a caldeira elétrica precisa de reparos, é acionada uma caldeira movida a óleo –e aí, os vizinhos do hospital gritam. A chaminé de 45 metros por onde sai a fumaça da caldeira ganhou o sugestivo apelido de Vesúvio (o vulcão que destruiu Pompéia, na Itália, no ano 79).
A fumaça negra do Vesúvio paulistano atinge os fundos de um prédio na rua Oscar Freire. "Não tem solução. Não podemos parar", diz a diretora da lavanderia, Maria Trito, 58 anos (e 33 de HC).
Pijamas
Entre os 200 funcionários da lavanderia, há 5 deficientes visuais e 16 costureiras. Os cegos trabalham dobrando pijamas recém-lavados. "Eles são mais felizes que os que enxergam", diz Maria Trito.
As costureiras, comandadas por Catarina Greco, 55 anos (e 21 de HC), produzem e reparam aventais, camisolas para obesos e capas. Também produzem –e se orgulham especialmente disso– "manguitos" (braçadeiras para aparelhos de pressão) a serem usados em braços de criança.
Artesãos
Por causa da crise, os cerca de 170 funcionários que trabalham nas nove seções da Divisão de Construção e Conservação do HC hoje mais conservam do que constroem, explica o chefe deles, Manoel Fabiano, 65 anos (e 43 de HC). Apesar disso, ainda há muito trabalho para esses artesãos.
Ernando Cezario, por exemplo, tem 58 anos e há 37 faz chaves e troca fechaduras no hospital. No dia em que conversou com a Folha havia trocado três fechaduras.
"Tem muita porta que não pode ficar aberta de jeito nenhum. Gavetas onde são guardados psicotrópicos também dão trabalho. Eu pego a fechadura, trago aqui correndo, troco e volto voando".
Cadeira de rodas
Na serralheria, José Vilemar, 40, trabalha há duas semanas na construção de uma cadeira de rodas especial, capaz de suportar o peso de um paciente de mais de 400 quilos, aguardado pelo hospital para os próximos dias. "Procuro fazer o máximo para ajudar as enfermeiras", diz.
Os pacientes também usufruem do trabalho dos tapeceiros, funileiros e, especialmente, dos marceneiros, como José Cipriano, 59 (há 18 anos no HC), que faz muletas, bengalas e macas em sua oficina.
Craniotomia
Uma placa na entrada de uma sala no terceiro andar do Instituto de Psiquiatria informa: "Artes médicas". Descobre-se entrando ali que a sala é, na verdade, um ateliê. "Faço um trabalho de artes plásticas voltado para a medicina", diz José Falcetti, 44.
O artista assistiu inúmeras cirurgias e dissecações de cadáveres antes de começar a fazer desenhos representando partes internas do corpo humano, em 1980.
O trabalho de Falcetti, que já fez uma exposição no próprio HC, é muito utilizado em aulas e congressos de medicina. "Gosto muito de desenhar o abdômem, é muito rico em detalhes. O coração é muito simples. O mais difícil é desenhar uma craniotomia, uma cirurgia de crânio", diz.
O sonho de Falcetti é montar uma escola de artes médicas no HC. Há quatro anos apresentou projeto nesse sentido à direção do hospital, orçado em US$ 70 mil, mas não teve resposta. "Seria interessante que alguém continuasse esse trabalho", diz.
Hot-dogs
Há 12 anos, Therezinha Rodrigues Pereira, 70, vende cachorros-quentes na porta do HC, na rua Enéas de Carvalho Aguiar.
Therezinha é uma das 36 ambulantes cadastradas pela Prefeitura de São Paulo para atuar na rua do hospital. Atualmente, eles enfrentam problemas por causa das cadeiras que instalaram em frente às barracas. "Às vezes, o doente está sentando aqui comendo e o fiscal chega e leva a cadeira", reclama.
"Os médicos não têm medo. Comem aqui, sentadinhos. Além do mais, não têm perigo. Se passar mal, a gente leva para o hospital."

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