São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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Hospital foi criado como centro de pesquisa

PAULO SILVA PINTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Colocar o pé na lama era a única preocupação que o Hospital das Clínicas (HC) inspirava, em 1938, na aluna de medicina Lourdes de Carvalho. Seis anos mais tarde, quando o Instituto Central foi inaugurado, ela iria trabalhar na administração. Mas naquele dia só estava sendo lançada a pedra fundamental do prédio. As aulas na faculdade pararam para todo mundo ir ver o evento.
"Como vamos atravessar todo dia este matagal?", ela perguntou a um professor, no caminho que hoje é a congestionada rua Enéas de Carvalho Aguiar (nome do primeiro superintendente do hospital). Passam por ali todos os dias cerca de 15 mil pessoas entre funcionários e pacientes.
Os seis anos e meio da construção do HC aconteceram durante o Estado Novo (1937-1944). Neste período, o presidente Getúlio Vargas valeu-se de poderes que incluíam a nomeação de interventores (no lugar de governadores). Em São Paulo, o cargo foi entregue ao médico Ademar de Barros (1938-1941), que começou a construir o HC. A inauguração ficou para Fernando Costa (1942-1944).
Há quem diga que a formação universitária de Barros jogou água no moinho do HC. Mas a construção de um hospital no "quintal" da Faculdade de Medicina já estava determinada havia tempo. Um hospital universitário foi uma das contrapartidas que a Fundação Rockfeller, dos EUA, exigiu ao bancar a construção do prédio de inspiração gótica para onde a faculdade se mudou em 1933 (antes funcionava na rua Brigadeiro Tobias, no bairro da Luz, região central). Outras exigências eram dedicação exclusiva de professores em matérias básicas e o máximo de 80 alunos por ano (hoje são 120).
Durante mais de dez anos, os alunos da Medicina Pinheiros (como é conhecida essa escola da USP por causa do bairro onde fica, na zona oeste de São Paulo) dependiam do bonde para ver doentes. Todas as clínicas coordenadas por professores ficavam na Santa Casa, em Santa Cecília (região central). Para a obstetrícia, o caminho era um pouco menor: até a rua Frei Caneca, onde fica ainda hoje a Maternidade São Paulo.
Atualmente, os alunos não estão livres de tantos deslocamentos. A parte prática do curso está logo ali, no HC. Mas as aulas das matérias básicas, antes ministradas em Pinheiros, ficam no Instituto de Ciências Biomédicas, no campus da USP, localizado no Butantã (zona oeste). É o inverso do que acontecia na década de 30. A ligação ao meio universitário determinou as características até dos pacientes que o HC recebia: quase que só indigentes iam para lá e apenas os casos mais graves, de maior interesse didático e científico. Isso durou até final da década de 80, quando o HC passou a engordar seus recursos com verbas do Inamps e o comando do hospital passou da Casa Civil do governo para a Secretaria de Saúde, entrando na estrutura de atendimento da cidade. Antes, para se atender um paciente segurado pelo Inamps era necessário que o professor titular da disciplina assinasse uma declaração de que havia interesse científico no caso.
O pronto-socorro tinha gente preparada até para a guerra. Longe do front da Segunda Gerra Mundial, o HC evidentemente não recebeu feridos. Mas um dos seus médicos, o cirurgião Alípio Correa Neto, participou da Força Expedicionária Brasileira, na Itália. "Isso influenciou o conceito de ética que ele ensinava. Para ele, um médico devia atender qualquer um, porque ele mesmo dava igual tratamento aos inimigos de guerra", conta um de seus alunos, o hoje professor titular de cirurgia do aparelho digestivo, Henrique Walter Pinotti.
Diferenciação
Entre as enfermeiras, o atendimento era também diferenciado. Quase todas as profissionais tinham formação universitária. "Os médicos se surpreendiam, queriam ver se nós conseguíamos tirar pressão arterial ou dar banho de leito no doente sem molhar a cama", conta Clarice Ferrarini, 72, que está no HC desde a fundação e já foi diretora de enfermagem.
A dedicação que o HC exigia era tão exclusiva que ela literalmente não saía de lá. "Nós só íamos para casa no final de semana. Dormíamos no último andar e os médicos chamavam a gente se havia algum caso mais grave no pronto-socorro", conta. O hospital absorveu praticamente toda a primeira turma da Escola de Enfermagem da USP, também construída com dinheiro da Fundação Rockfeller. Outra fonte de recursos era a Fundação Kellog, que patrocinava a especialização de profissionais nos Estados Unidos.
Novos institutos
O dinheiro federal também chegava com facilidade ao topo da colina de Pinheiros. Apenas sete anos após a inauguração do Instituto Central, cortava-se a fita na porta de outro instituto: o de Ortopedia e Traumatologia, um presente de Getúlio Vargas ao médico Francisco de Godói Moreira, que tinha tratado de seu filho. "Ele sofria de uma paralisia rara, que exigia muitos cuidados. Acabou morrendo, mas Getúlio ficou grato ao médico", conta Lourdes Carvalho.
Um ano depois, em 1952, veio outro instituto, o de Psiquiatria, também com prédio próprio. O terceiro instituto, o do Coração, acabou surgindo só em 1975, mas trouxe uma estrutura totalmente nova, que agora todo o complexo tenta imitar: 20% dos pacientes atendidos pagam pelos serviços. O dinheiro é revertido para uma fundação que banca 60% dos custos do hospital (ou seja, o dinheiro que entra é aplicado também no atendimento gratuito). É isso que se pretende fazer com a Fundação Faculdade de Medicina, que surgiu em 1986 para atender todo o complexo do HC.
Mas a multiplicação mais importante do HC talvez tenha sido a de especialidades cirúrgicas. Foi idéia daquele médico da FEB, Alípio Correa Neto, segundo Henrique Walter Pinotti. "Antes os cirurgiões operavam de tudo. Hoje era fígado, amanhã coração. A casuística se perdia e era muito difícil fazer ciência." Alípio começou a desmembrar as áreas cirúrgicas em 1952, o que acabou favorecendo a entrada do HC na era dos transplantes. Em 1965 veio o primeiro de rim. Em 1968, Euryclides de Jesus Zerbini fez o primeiro transplante de coração das Américas, pouco depois do primeiro do mundo, na África do Sul.

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