São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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'Faço questão de não ver, não escutar nada'

DA REPORTAGEM LOCAL

O gerente administrativo Ricardo Luiz Kelemen, 38, está sentado às 3h40 de quinta-feira (dia 7) em um dos bancos da praça Oswaldo Cruz (Paraíso, zona sul de São Paulo).
Apenas cumpre ritual diário, iniciado há seis anos, época de seu casamento. Diz que nunca foi assaltado.
Dorme às 21h, acorda às 2h, faz cem flexões e toma uma ducha fria de 30 minutos. Veste-se para trabalhar, apanha a pasta de couro marrom e segue a pé para a praça.
Antes, passa em uma panificadora para tomar um lanche "reforçado" –misto-quente, vitamina e salada de frutas naquela quinta-feira.
Escolhe um banco da praça. Espera um pouco. Levanta-se, vai até uma banca próxima comprar dois jornais, lidos do início ao fim.
"Faço questão de não ver nada, de não escutar nada do que acontece na praça", diz. Na verdade, não há quase nada para ver ou escutar a maior parte do tempo.
Olha o relógio, 7h, momento de levantar e seguir para o trabalho, em uma imobiliária da rua Coronel Xavier de Toledo, no centro.
Pode ir a pé –a distância é grande, cerca de 4 km– ou tomar um ônibus, depende da disposição.
Considera sua rotina "normal", típica de alguém que leva vida "saudável" –acordar e dormir cedo. Admite ter insônia, mas não "doentia".
Ao sair no meio da madrugada, Kelemen deixa em casa mulher, a filha de 5 anos e o filho de 1. Diz que sua mulher, "crente", não estranha sua rotina nem se ressente da falta de convívio.
"Ela sabe que não sou dado a vícios ou a andar com más companhias", define Kelmen, que admite sucumbir ao vício do cigarro para ajudar a atravessar as madrugadas insones.
Para não incomodar a família com seus hábitos noturnos, adotou o que chama de "sistema americano": dorme em um quarto enquanto a mulher e os dois filhos ocupam outro. Tem videocassete no quarto, que eventualmente o ajuda a abreviar o período de sono.
Naquela quinta-feira, antes dos exercícios físicos e da ducha fria, havia assistido duas vezes ao filme "Eternamente Jovem", com Mel Gibson.
A rotina espartana só se interrompe nos fins de semana, quando se permite levantar às 6h. Durante a semana, nada faz com que interrompa seu hábito, mesmo o mau tempo ou as estações do ano.
Quando chove, diz, usa guarda-chuva e procura lugares abrigados. No inverno, o banho de 30 minutos continua frio.
Às 3h40 daquela quinta-feira, além de Kelemen, 12 pessoas podiam ser contadas na avenida Paulista -a praça fica no início da avenida.
Quem estava por lá àquela hora –policiais, taxistas, seguranças, lixeiros e pessoas esperando ônibus para ir para casa– tinha algum motivo para isso. Kelemen não conseguiu definir o seu, além da força de um hábito.

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