São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Peculato de uso

MARCELO FORTES BARBOSA

No Brasil, não se pune o "furto de uso", a "apropriação indébita de uso" e o "peculato de uso".
Assim, se alguém, clandestinamente, utilizar-se do automóvel do vizinho durante a noite para traficar drogas e devolvê-lo ao local de origem, sendo preso no ato, será responsabilizado pelo delito de tráfico de drogas, mas não por furto, que a nossa lei penal não tipifica.
O mesmo ocorre se uma costureira, que recebeu da cliente um modelo de alta-costura para reparos, usá-lo em um baile e devolvê-lo sem danos, porque também o código não tipifica a apropriação indébita de uso.
A situação é mais grave quando se trata de peculato, porque o peculato de uso é inerente à nossa herança cultural e o artigo 312 do Código Penal tipifica o peculato propriamente dito, o peculato-furto, o chamado peculato-desvio e o peculato culposo, sem aludir ao peculato de uso, o que acontece também com o decreto-lei nº 201/67, que trata da responsabilidade dos prefeitos e vereadores.
O legislador de 69 previa o peculato de uso no artigo 346, mas esse Código jamais chegou a entrar em vigor, e o que assistimos hoje é a utilização de arados, motoniveladoras e automóveis cuja gasolina e óleo são consumidos de maneira ampla e até o uso de mão-de-obra e serviços da administração pública, não sendo difícil encontrar serventes e faxineiros do serviço público a limpar casas de filhos de altos funcionários que vão se casar...
Quanto à reforma de casa, com empréstimo de material e auxílio de funcionários de empresa pública, o assunto torna-se corriqueiro e disso só pode resultar processo administrativo ou civil, porque a jurisprudência, na conformidade com o dispositivo legal atinente ao peculato, entende que tais fatos não são típicos.
Se estamos no limiar de uma reforma penal, por mais indulgentes que pretendamos ser, não podemos nos esquecer que a coisa usada não pode ser restituída nas mesmas condições em que se encontrava antes, e que mesmo no peculato doloso, a resposição do dinheiro apropriado não extingue a punibilidade, daí porque é impensável a permanência da situação atual.
E mais: a utilização de funcionários públicos para fazer serviço particular para servidores de alto escalão, inclusive nas estatais, que, em face do artigo 327 do Código Penal, torna responsabilizáveis como funcionários os seus diretores, além de ocasionar prejuízo à administração pela via do descrédito, isto sem falar nas horas de trabalho eventualmente apropriadas, é, no fundo, resquício do tratamento paternalístico entre patrões e empregados, que sempre caracterizou a cultura brasileira.
É esta relação de suserania e vassalagem que afasta o Brasil do capitalismo social para jogá-lo no mercantilismo patrimonialista, que resulta no capitalismo selvagem.
Além disso, serve para gerar esta confusão entre patrimônio público e particular, que torna o uso da coisa pública e dos serviços públicos por altos funcionários em suas atividades particulares, como diz vetusto Acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, coisa corriqueira.
Usual ou não, o peculato de uso é profundamente aético, e como nos dias de hoje prolifera na maioria dos setores da Administração Pública, há que ser combatido, porque os servidores públicos não são seres eleitos pelo social, como pensava Marx na "Miséria da Filosofia", buscando explicar a quase perpetuidade dos seus cargos, mas tão só empregados do Estado incumbidos de fazer o melhor, em prol do bom funcionamento da administração.

Texto Anterior: 'Os goles de cerveja são uma preparação para o dia seguinte'
Próximo Texto: Insuficiências da Justiça Federal tendem a diminuir
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.