São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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Betinho e o bicho

LUÍS NASSIF

A pior coisa que poderia ocorrer na grande luta em favor da ética na vida nacional seria o bom-mocismo de encontrar justificativas para pedidos de doações a bicheiros para obras beneméritas –principalmente envolvendo pessoa pública do porte de Betinho.
Não tem sentido. Esses bicheiros benemerentes são traficantes, assassinos ferozes com intermináveis listas de mortos nas costas. O espaço político e a impunidade, que lhes permitiram a prática reiterada de crimes, foram obtidos exclusivamente graças aos que pensaram dar destinação bondosa a um dinheiro sujo.
Teriam obtido espaço em redes nacionais de televisão, seriam visitados por políticos de todos os tipos, garantiriam a impunidade por tantos e tantos anos, se dependessem exclusivamente da face suja de sua atividade? É evidente que não.
O financiamento do Carnaval, do futebol, de obras pias e sacras –e da luta dos aidéticos– foi o óbulo pago à opinião pública. O financiamento das campanhas eleitorais, a taxa de proteção paga aos brancos. Tudo para lhes garantir o direito de continuarem matando os negros, traficando drogas e recebendo tratamento vip da mídia.
Graças ao financiamento às boas causas e à permissividade absurda da sociedade carioca, puderam participar de chás benemerentes à tarde e de banhos de sangue à noite.
Não se desmereça a campanha de Betinho pela cidadania. Principalmente porque a idéia central é justamente substituir a figura do salvador da pátria pela mobilização da sociedade civil, viva, atuante e anônima.
Considere-se também que o dinheiro recebido e o trabalho de Betinho foram fundamentais para descontaminar os bancos de sangue do Rio, poupando milhares de vidas. E que a busca desesperada de saídas legítimas o levou a encontrar a solução no apelo direto à cidadania.
Mas não se minimize no episódio atitudes como a do atual governador Nilo Baptista, de expor uma pessoa desesperada como Betinho –que, na ocasião, acabara de perder dois irmãos vítimas da Aids, ele próprio portador do vírus– à tentação fácil do dinheiro do crime.
E, depois, utilizar o episódio como biombo para ocultar uma relação com os bicheiros que –pelas notícias até agora divulgadas– ia muito além do combate à Aids.
Revisão exclusiva
Em meses de revisão, os mortos-vivos que compõem o atual Congresso Nacional conseguiram votar: 1) manutenção do voto obrigatório; 2) manutenção da infidelidade partidária; 3) garantia de seus direitos funcionais.
Não chegaram ainda a propor anistia para políticos apanhados com a boca na botija. Mas é possível que, baseados no álibi de Betinho, proponham a legalização das doações de bicheiros para fins filantrópicos –e, para não pressionar os cofres públicos, entendam como filantropia exclusivamente a contribuição desinteressada a campanhas políticas.
Por mais que se entenda a luta do relator Nelson Jobim para preservar seu trabalho, não dá. Este Congresso está inevitavelmente inoculado pelo vírus do deboche. É o fim de linha de um sistema espúrio que apodreceu irreversivelmente nos últimos anos, na exata proporção em que a nação crescia e se tornava maior que o Estado.
Não sai mais fruta dessa árvore. Havia uma possibilidade no fim do ano passado, quando a CPI do Orçamento enfraqueceu a ação dos quadrilheiros. Mas a oportunidade foi perdida pela omissão do ex-ministro Fernando Henrique Cardoso e por sua decisão de lançar a idéia do real como maneira de desviar o foco das cobranças, para que assumisse a liderança da revisão.
Agora, é suspender os trabalhos e tratar de levantar a bandeira da Constituinte exclusiva –única maneira de romper com essa dominação escandalosa do Estado por grupos políticos, sem se chegar a um desfecho inconstitucional.
O caso da cerveja
É absurdo enfrentar o acordo de preços das cervejarias com redução de alíquotas de importação. Trata-se de abuso de poder econômico, claramente tipificado como crime em qualquer legislação decente sobre a matéria.

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