São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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Livro analisa ciência dos paulistas e cariocas

LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em finais do século 19, o Brasil era com frequência representado como um exemplo de país degenerado. Tal qual um estigma profundo, essa imagem se revestia de explicações e contornos, hoje inesperados. De um lado, era a miscigenação das raças, aqui mais disseminada que em outros locais, que parecia comprovar a decadência da nação. De outro, eram as inúmeras doenças que surgiam como sinais, pistas a indicar uma certa falência local.
"O Brasil é um grande hospital" dizia Miguel Couto, presidente da Academia Nacional de Medicina, formalizando uma constatação a essas alturas já quase consensual. É no interior desse panorama político e intelectual, que se pode entender a ascensão de uma nova figura, que surge investida de poderes e capacidades de ação até então desconhecidos. A referência é a essa "era dos scientistas", representados na imagem do médico sanitarista, que em função do premente combate às numerosas moléstias e epidemias, como a febre amarela ou a terrível tuberculose –mais conhecida como peste branca–, passavam a assumir formas alargadas de atuação.
Vários são os cientistas que se destacaram nesse momento, assim como as instituições de pesquisa que amadurecem e assumem posições de maior visibilidade. Esse é o caso das faculdades de direito de Recife e de São Paulo; dos museus etnográficos do Rio de Janeiro, São Paulo e Belém; das faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro; assim como de estabelecimentos diretamente ligados à área de epidemiologia, como os institutos Manguinhos o Rio de Janeiro, e Butantan em São Paulo.
Frutos de um contexto semelhante, de um período em que a sanitarização e as campanhas de higienização foram a tônica central das políticas públicas locais –surgindo, nesse sentido, quase que como "símbolos de civilização"–, Manguinhos e Butantan representam, em seu percurso, um pouco das vicissitudes porque passam a maior parte dos centros de pesquisa no brasil, tão marcados por um "contínuo recomeçar".
Essa é de fato uma das teses centrais do livro "Cobras e lagartos & outros bichos - uma história comparada dos institutos Oswaldo Cruz e Butantan". Nesse ensaio, Jaime Larry Benchimol e Luiz Antonio Teixeira, tendo como base a análise desses dois centros paulista e carioca de pesquisa, recuperam uma parte significativa da pouca conhecida história da ciência no Brasil, assim como procuram verificar o papel que as instituições biomédicas desempenharam na dinâmica da sociedade nacional.
É com fôlego que os pesquisadores perseguem os destinos desses dois estabelecimentos, ora comuns e convergentes, ora profundamente distintos em suas condições materiais e oportunidades de atuação.
No entanto, a importância desse livro não está apenas na recuperação da história institucional desses estabelecimentos, mas sobretudo na verificação de uma trajetória que é intelectual e científica, ao mesmo tempo que eminentemente política.
O livro começa em finais do século 19, com as primeiras vitórias no combate à febre amarela e à peste bubônica; adentra pela década de 1910, quando o cientista, ritualizado na figura de Oswaldo Cruz, se transforma em um verdadeiro mito nacional; segue pelos anos 20, tão marcados pelo problema da saúde pública, assim como o pela rixa São Paulo/ Rio de Janeiro –neste caso personificada no embate entre Artur Neiva do Instituto Butantan e Carlos Chagas, do Manguinhos–; para desembocar em uma certa falência desse tipo de projeto científico, que se enfraquece frente à crescente mercantilização dos laboratórios nos anos 20, assim como diante da intervenção imposta pela política de Getúlio, já na década de 30.
Desse panorama todo, emergem como atores destacados cientistas e políticos, pensamento social e contexto econômico, em meio a um movimento comum e intercalado aonde a produção científica surge como produto e produção, reflexo e partícipe de seu contexto.
Na verdade, "Cobras e Lagartos" revela com primor de detalhes –para um leitor mais desavisado, por vezes, tediosos–, um contexto repleto de "cientistas maravilhosos com suas instituições voadoras"; o desenho de uma geração que acreditou piamente no poder das ciências e em seu potencial de transformação. Contexto intelectual por certo datado, o final dos anos 30 marca o final desse período tão caracterizado pelo sucesso de projetos personalistas, com claras perspectivas de intervenção, e sobretudo pautados por uma crença suprema na pesquisa básica.
Mas, nesse terreno, tinha mesmo razão Artur Neiva, quando ainda nos anos 30 afirmava, que o "Brasil ainda acampa".

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