São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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Silêncio de um bom pensador

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1979, "A Cultura do Narcisismo" explodiu no meio editorial norte-americano. Os universitários torceram o nariz, mas a crítica jornalística cobriu o livro de elogios. Seu autor, Christopher Lasch, tornou-se, em breve, sinônimo de "cultura do narcisismo". No início deste ano Lasch morreu. A imprensa dedicou algumas linhas ao evento, a academia desconheceu o assunto e quanto ao público leitor... quem é mesmo Lasch? É isto "a cultura do narcisismo!".
A incapacidade que têm os indivíduos de reter do passado o que merece ser lembrado no futuro. Desde que escreveu "A Agonia da Esquerda Americana" (1969), Lasch viu no declínio da tradição uma das fontes do desconforto cultural moderno. A violência e o radicalismo dos anos 60, dizia ele, escondiam um descrédito na tradição política que só poderia converter-se em conservadorismo. Acertou! O "yuppismo" dos anos 80 veio lhe dar razão.
Em 1974/75 foi a vez da família. Numa série de artigos, posteriormente reunidos em "Refúgio num Mundo sem Compaixão" (1977), Lasch voltou ao tema da tradição, desta feita na esfera do privado. A renúncia à tradição levava os pais a se imaginarem incompetentes para lidar com os filhos e a delegarem aos técnicos a tarefa de educá-los moral e emocionalmente.
Lasch chamou este fenômeno de "proletarização da paternidade", dando relevo à expropriação da autoridade dos adultos leigos na sociedade de massas. Por fim, em "O Mínimo Eu" (1984), escrito depois de "A Cultura do Narcisismo", analisou a "moral da sobrevivência" na cultura atual.
Como epígrafe escolheu uma citação de William James: "A deificação da sobrevivência per se (...) é seguramente o mais estranho ponto de chegada intelectual jamais proposto por um homem a outro". Para Lasch, quando o presente dá as costas ao passado e recusa-se a considerar o futuro como objeto de preocupação, a tradição desmorona e, com ela, a noção de valor que conhecemos.
O bom, o justo e o verdadeiro passam a ser descritos como instrumentos de utilidade ou de interesses de classes, indivíduos, grupos ou corporações descomprometidos com princípios válidos para todos. É o reinado do "mínimo eu" apolítico e hiperpsicológico; dos sujeitos que se contentam apenas em olhar para si ou, no máximo, para o petit comité encarregado de satisfazer suas necessidades.
Esta tese evoca irresistivelmente Hannah Arendt. Porém, a marca patente frankfurtiana cortou-lhe o fôlego. O freudo-marxismo tem limitações, e a principal é a de confiar em critérios trans-históricos para o julgamento do bem e do mal. Em última instância, Lasch era um racionalista. Acreditava que Freud e Marx haviam descoberto a pedra filosofal da moral pública e privada. Depois deles, era o dilúvio.
Por isso, abriu o flanco à críticas de conservadores, radicais, pós-modernistas e todos quantos não cessaram de perguntar: se a moral contemporânea é "narcisista" onde está inscrita a "verdadeira" moral pública e privada? Em "O Capital" ou em "A Interpretação dos Sonhos"?
O que é uma moral não-narcisista? É a moral patriarcal, machista, racista, discriminadora de minorias sexuais como a de nossos avós e bisavós? Ou é a moral imperialista, colonialista, stalinista, estatizante, totalitária e opressora do exercício das liberdades individuais? Em que e por que a velha moral, com ou sem verniz marxista e freudiano, seria melhor do que uma moral voltada para o culto do corpo, da sensibilidade terapêutica ou da obsessão pela sobrevivência e pelo consumo? O quê, na idéia de "tradição", pode garantir a moral idealista de Lasch?
Se houvesse lido mais atentamente William James ou o contemporâneo Richard Rorty, Lasch talvez não tivesse encontrado dificuldades em refutar tais argumentos. Seu impulso original, na defesa das virtudes cívicas e pessoais, poderia ter recebido uma tradução teórica mais feliz. Defender a tradição não é, como querem os conservadores, congelar o mundo no status quo. É procurar preservar pragmaticamente tudo aquilo que nos torna indivíduos capazes de agir eticamente com autonomia.
Muito disto acha-se recomendado em Marx e Freud, mas também em numerosos outros pensadores sem proximidade intelectual com os dois. O fundamental, na idéia de tradição, Lasch poderia ter explicitado, é manter os experimentos morais que modelaram nossa imagem de sujeitos éticos.
Não se trata de ir contra toda e qualquer mudança; trata-se de lutar contra aquelas que agridem a integridade dos seres humanos que vêem na dor física e na humilhação, o limite para qualquer proposta ou imposição de formas de viver. Tudo isto está implícito em Lasch; tudo poderia ter sido mais claramente mostrado em sua obra sensível e intransigente na defesa da cultura humanista e democrática.
Hannah Arendt disse, citando Cícero: "Como tudo seria diferente se vencessem na vida aqueles que venceram na morte." Lasch certamente está entre os últimos. Foi um homem com qualidades, um pensador de bem, cujo nome deve ser rememorado e não silenciado pela "cultura do narcisismo".

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