São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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A rede de corrupção

RENATO JANINE RIBEIRO

É preciso insistir –na hora em que um dos nomes mais respeitados do país reconhece ter recebido, para uma causa nobre, dinheiro do bicho– na necessidade de tratar as questões éticas com profundidade e inteligência.
O clamor pela ética na política começou a mudar o Brasil. Mas muito resta ser feito, e agora estamos diante de um perigo: o de se usar a própria exigência ética para confundir em vez de mudar.
Devemos ter sempre em mente dois pontos. O primeiro é que o Brasil se tornou, mais e mais, uma sociedade amplamente ilegal. À medida que se esgarça a trama das relações sociais, aumentam os espaços de ilegalidade, incluindo, claro, a corrupção.
O Estado foi sucateado, culminando no governo Collor; a administração pública é mal remunerada; estão desprestigiados os setores que atendem ao público, em especial de baixa renda. Para muitos brasileiros, o Estado significa, acima de tudo, filas. Isso só favorece a corrupção, e quem pode paga para fugir delas, nem que seja só um "agrado" a um funcionário.
Neste contexto, um homem a quem não se pode acusar de corrupção ter recebido dinheiro de bicheiros –para salvar vidas, quando empresas ditas honestas (muitas das quais financiaram PC Farias ou Collor) e o poder público fugiam a esta responsabilidade– é algo que somente se pode condenar por má-fé ou por ignorância do país.
Não quer dizer que devamos celebrar essa conduta. Mas isso apenas atesta que no Brasil as redes de ilegalismo são mais vastas do que imaginamos, e torna prioritário o desmantelamento delas.
Essa meta, contudo, não pode significar que aceitemos o discurso reacionário, que agora afirma que "todos são corruptos", ou se alegra em dizer que até os honestos sujaram as mãos. Por mais que nos desagradem os guardadores de carro ou as pequenas chantagens que vivemos no cotidiano, não dá para igualar a microcorrupção àquela que se apossou do aparelho de Estado e da própria sociedade.
E aqui é preciso alertar para a mais recente estratégia dos setores reacionários em nossa sociedade. Eles estão na defensiva. Seu presidente foi surpreendido e condenado. Os "dossiês" que vêm a público ampliam os indícios de seu envolvimento. Como reagem?
Quando a CPI do Orçamento acusa 17 parlamentares de corrupção, nenhum de esquerda e a maioria de direita, eles pinçam o fato de que um deles (de centro) presidiu parte do processo de Fernando Collor, para vender a idéia de que este foi condenado por gente que não era melhor do que ele. Não podendo acusar a esquerda de corrupção, tentam amalgamá-la à hoste de corruptos de direita, usando insinuações.
O mesmo utilizam agora contra Betinho, assim como tentam esconder o fato de que os parlamentares acusados de corrupção pertencem à direita e centro-direita, lançando a má fama sobre toda a instituição parlamentar e insinuando soluções de força.
Por isso, e este o segundo ponto, é preciso considerar que a corrupção não é um traço de caráter nem se pode esgotar numa abordagem baseada na psicologia de massas ou na antropologia. O problema é político. O Estado e a sociedade brasileiros foram tomados por organizações que fazem uso privado da coisa pública.
Sem dúvida, ao substituírem o poder público, alguma coisa útil acabam gerando. Todo oligarca já salvou vidas, todo "capo" da máfia praticou o bem. Mas não se pode elogiar o criminoso pelo raro bem que fez, nem condenar o honesto porque um dia se relacionou com eles.
Em suma, há que ver o conjunto, sem deixar que o galho da árvore oculte a floresta. Temos hoje a oportunidade, sem precedentes, de enfrentar as redes de ilegalidade. Perderemos esta chance, para talvez não mais tê-la no correr de nossas vidas, se a obsessão com o detalhe nos fizer esquecer que estamos diante de enormes quadrilhas de crime organizado.
Tudo tem que vir à tona, mas cuidemos, à medida que a lama aflore, de combatê-la sem a fácil e má saída da caça às bruxas. Ninguém, numa sociedade corrompida, é sem tacha. Mas isso não iguala uns e outros. A corrupção é problema político do mais alto grau, e as responsabilidades por ela estão hierarquizadas. Mal começamos a divisá-las. Para os organizadores da ilegalidade, a melhor estratégia consiste em denegrir a todos para se anistiarem.
E o que sucederá se cairmos no engodo? Basta ver a Itália, cuja operação "Mãos Limpas" parecia mais adiantada que a nossa. Pois lá a falta de tino na leitura política da corrupção foi tal que, pela primeira vez em 50 anos, a maioria parlamentar e talvez o próprio governo incluam os velhos fascistas, que em nosso século foram o caso máximo do crime organizado exercendo o poder.
Para pôr termo à rede de corrupção dirigida pela Democracia Cristã e pelo Partido Socialista, os italianos elegeram uma maioria que inclui o partido que não se contentou em corromper, mas torturou e matou. E o provável primeiro-ministro é um homem dos monopólios da TV.
No Brasil, pelo menos tiramos Collor. A Itália agora elegeu o seu. Isso deve ser um alerta para a necessidade de entender bem o que é a rede de ilegalidade. Sem isso, corremos o risco de substituir ilegalidades graves, mas pacíficas, por ilegalidades maiores e violentas.

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