São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 1994
Texto Anterior | Índice

Suicídio de Cobain foi ato pré-histórico

BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA FOLHA

Assim que soube do suicídio do roqueiro do Samsara - ups! - Nirvana, Kurt Cobain, pensei com meus colchetes: ‘‘Que babaca!’’
Tudo bem, eu mesma tenho um potencial destrutivo tamanho que meus amigos costumam prever o pior. Sempre apostam que meu velório terá caixão lacrado...
Todos temos os nossos diabinhos. Mas isso não redime o estrago perpetrado por Cobain. Sua morte me remeteu aos suicídios de Hemingway e Nava. aqueles sim foram atos nobres. Depressão por depressão, descompensação biológica por descompensação biológica, pelo menos Ernerst Hemingway e Pedro Nava não se mataram para se vingar do mundo vil. Explico: eles não deixaram bilhetinhos de despedida. E Cobain deixou um - bem meloso.
Há, claro, algo de grandioso em enfiar o cano de uma garrucha na boca e puxar o gatilho. Mas, tirar a própria vida deixando pistas para explicar o gesto nada tem a ver com o direito supremo de se fazer com a própria carcaça o que se bem entende. Trata-se, isto sim, de uma mesquinharia ímpar. Trata-se do desejo de atribuir a culpa do próprio sofrimento a quem fica. Para mim, o ‘‘suicídio com bula’’ só pode ser encarado como seleção natural da espécie.
Nos tempos de antidepressivos como Prozac, Anafranil e lítio, o suicídio passou a ser um ato de rebeldia pré-histórico. Em vez de fazer de vítima do sistema, por que Cobain não passou a mão na mulher e na filha e tomou um ônibus?
Minha amiga Bucicleide discorda de mim. Segundo ela, Cobain fez jus ao lema roqueiro: ‘‘Morra jovem, mantenha-se bonito, deixe um presunto lindo’’.
Bucicleide acha que o suicídio de Cobain o dissociou da hipocrisia. Na tentativa de me convencer de que uso o cabresto da ótica cristã para condenar o roqueiro, ela invocou Zweig, Maiakovski e Kleist.
Por cima de ‘‘moi’’ não! Lembro o que senti quando Bruno Bettelheim se matou. Foi uma frustração comparável apenas à do personagem de Woody Allen, em ‘‘Crimes e Paixões’’. No filme , Allen é um video maker que dedica a vida a um documentário sobre um psiquiatra a quem venera. O terapeuta tem respostas para tudo, mas um belo dia se mata. E o videomaker perde o rumo de casa...

Texto Anterior: Clínica informa resultados de exames pelo telefone
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.