São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 1994
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Betinho vira santo ao reconhecer que errou

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O fato de Betinho ter aparecido na lista do jogo do bicho envolve problemas e ambiguidades sem conta. A inteligência de comentaristas, filósofos e homens de bem foi posta à prova na última semana, com excelentes resultados.
Logo depois de Betinho ter admitido seu "erro político" (aceitar dinheiro do bicho para assistência à Aids), Jânio de Freitas foi ao ponto. Uma coisa é você ser político, delegado, autoridade –e receber propinas de Castor significa conivência com a contravenção. Outra é você usar o dinheiro para fazer o bem, sem comprometer sua causa, sem se corromper em função disso.
O raciocínio é correto. Quantas empreiteiras, bancos ou supermercados não fazem, aliás, obras de caridade, sem que se saiba de que tramóias resulta o ato generoso?
O caso Betinho poderia esgotar-se nesse argumento. Tenho a impressão, contudo, de que apenas estamos iniciando o debate sobre o tema.
Brecht dizia que é infeliz o povo que precisa de heróis. Mais infeliz, certamente, o povo que precisa de santos.
Betinho é um santo. E ser santo não significa apenas ser bom de coração; exige coragem, implica um poder de afirmação, um senso de positividade e pertinácia. A doutrina católica fala em fé, esperança e caridade. A caridade sozinha é algo que um bicheiro pode tranquilamente fazer. Do santo, exige-se também a disposição ao martírio.
Admitindo seu "erro político", Betinho foi mais santificado do que nunca.
A ambiguidade principal do caso é essa. Antes, Betinho era perfeito, inatacável. Divulgou-se seu discutível tropeço. Ele bateu no peito. Tornou-se mais perfeito, mais inatacável e mais santo.
O próprio São Pedro renegou Cristo três vezes.
Faltava a Betinho a humanidade de um suposto pecado. Com seu "erro", o quadro fica completo. A confissão o glorifica.
Mas com isso nos colocamos diante de um impasse lógico. De um lado, Betinho é bom porque admitiu seu erro –este o sentido, por exemplo, da coluna de Elio Gaspari na "Veja" desta semana. De outro lado, Betinho continua bom porque não fez erro nenhum –este o sentido do artigo de Jânio de Freitas.
Onde buscar sua santidade? A opinião pública mistura as duas linhas de argumentação. Santo porque falível, santo porque confessa; santo por que não errou, santo por que se acusa injustamente.
Não entendo bem o que Betinho quis dizer com "erro político". A frase sugere que não houve "erro moral". Que o erro não foi moral, mas sim político. Certamente, erro moral não houve. Mas se houve erro político, o que é um erro político?
Kant dizia que a chave para a conciliação entre moral e política é o critério da publicidade. Será moral todo ato político que possa ser instituído publicamente. O segredo, o sigilo –numa palavra, o inconfessável– eis a imoralidade no âmbito do poder.
Betinho teria feito algo de inconfessável e secreto, receber dinheiro do jogo do bicho. Por uma noite ouviu como São Pedro o canto do galo, e silenciou. Em seguida, divulgou, tornou público, o fato supostamente vergonhoso.
Lançou-se ao teste kantiano da publicidade, e foi absolvido. Mas isso não desculpa o ato secreto em que se envolveu. Betinho não teria divulgado o financiamento do jogo do bicho, se não tivesse sido forçado a tanto.
Temos, então, o seguinte paradoxo: intimamente, Betinho acha que errou. Escondeu o que fez. Para o público, não houve erro nenhum. Logo, Betinho foi mais rigoroso consigo mesmo ao cometer um ato imoral, do que foram com ele, perdoando publicamente sua ação. Por ser mais rigoroso consigo mesmo do que os outros seriam rigorosos com ele, Betinho tornou-se mais santo do que era. Atingiu a metasantidade.
Mas, com isso, devolveu à sociedade brasileira, ou melhor, à opinião pública, o poder beatífico de perdoar. Todos os argumentos em favor de Betinho, por corretos que sejam, impregnam-se de um olor episcopal. A opinião pública se investe de poder absoluto e eclesiástico: "Eu te absolvo, meu filho".
O processo é brasileiríssimo, sentimental, cordial. Betinho absolvido nos absolve das pequenas irregularidades, das corrupções cotidianas que cometemos com a consciência limpa. Quem não faz seus "erros políticos"?
Renato Janine Ribeiro tem argumentado com eloquência e razão, ao distinguir entre a imoralidade cotidiana, pessoal, que nos envolve quando pagamos um cafezinho ao guarda de trânsito, e a imoralidade institucional, sistemática, que orienta as decisões de Estado.
"Somos todos corruptos", diz Mario Amato. Renato Janine corrige: uma coisa é ser uma pessoa humana dentro de uma sociedade que só funciona dentro das pequenas corrupções, outra coisa é ser um agente no sistema de corrupção estatal. Dizer que "todos somos corruptos" é, de certo modo, inocentar os canalhas pelo fato de fazermos pequenas e insignificantes canalhices, mais como vítimas do que como responsáveis pelo estado atual das coisas.
É verdade. Mas é também uma aposta num "relativo" da ética. E quando se fala em relativo da ética, tudo vai para a cucuia. O ideal moral não admite meios-termos. Não tolera desculpas, por mais razoáveis que sejam. A ética é o domínio do absoluto, do categórico.
Kant dizi que não se deve mentir nunca. Nem quando uma mentirinha possa ser um ato caridoso. "Não, você vai melhorar", dizemos ao moribundo. Mentira. Ato imoral. Ética é questão de preto no branco.
A moral conflita com a própria caridade. A moral é desumana nesse aspecto. O resto, a distinção entre a pequena imoralidade nossa, de vítimas espertas, e a grande imoralidade das empreiteiras e ministros, é secundário.
Lembro-me de Gerd Bornheim, filósofo, numa conferência sobre ética nos seminários organizados por Adauto Novaes, que depois viraram livro editado pela Companhia das Letras. Bornheim dizia que a ética kantiana é inaplicável, uma vez que excessivamente rigorosa.
Ora, a melhor ética é necessariamente a mais rigorosa. O chamado "rigorismo ético" de Kant é "rigoroso" demais, inaplicável, mas verdadeiro. Contudo, exercemos nossa liberdade ao justificar exceções simpáticas à regra estabelecida. Assim Betinho, ao receber dinheiro do jogo do bicho.
O problema está em querer santificar Betinho. Mais santo, por que confessou um erro que não existe.
É um absurdo proibírem o jogo do bicho. Nem por isso eu gostaria de absolver Castor de Andrade.

Todo um aparato de cultura filosófica foi empregado por José Arthur Giannotti em defesa da candidatura FHC, no "Mais!" deste domingo. Foi um prazer a leitura de seu artigo. Retenho, entretanto, um de seus parágrafos finais. "Será um desastre", diz Giannotti, se virmos "de novo o PFL comandando os Ministérios da Educação e de Comunicação".
Mas será que ele ainda tem dúvidas? Não é claro que uma aliança PSDB-PFL vai deixar o Ministério das Comunicações com prepostos de Antônio Carlos Magalhães e da Rede Globo? Quem ele sugere para o cargo? Chico de Oliveira? Luiz Felipe de Alencastro? Rodrigo Neves ou outros Cebrap?
O próprio Giannotti se questiona. Talvez sua confiança em FHC seja "ilusão de intelectual fora da política". Houve, até certo tempo, filósofos não tão ingênuos em matéria de política. Marx, por exemplo.
As críticas que Giannotti faz ao PT são perfeitas, agudas, violentas. Concordo com o que ele diz: desconfiança face à democracia representativa, basicamente. Mas é melhor criticar o PT do que defender Fernando Henrique. E Antônio Carlos Magalhães. Como fazem falta esquerdistas hoje em dia.

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