São Paulo, sexta-feira, 15 de abril de 1994
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As sementes do ódio

JOSÉ SARNEY

Mais um programa é apresentado no combate à violência. Os presidentes vivem suas circunstâncias. Eu tive o meu programa. Mas a violência cada vez mais ameaça.
Todos temos direito à paz. O direito de não ter medo do outro, e direito de ter as janelas abertas para o jardim e a porta franca a quem chegar. O direito de fazer amigos entre desconhecidos, e o de não temer as ruas cheias da multidão anônima, ou vazias na noite.
Todos nós temos o direito de não ter medo do medo.
O homem brasileiro é cordial, e disso deram contas todos os viajantes estrangeiros que conheceram as nossas cidades e percorreram os vastos sertões. Seu coração se abria, a mesa se punha, e não faltavam, nas casas que se espalhavam nos ermos, o pouso para quem chamasse pedindo abrigo.
De repente, em poucas décadas, tudo mudou. Somos um povo com medo. Um povo que se sente ocupado pelas hordas de um apocalipse particular.
Nas grandes cidades há quem mate por um pão; os que o roubam e os que o defendem do roubo.
Desataram-se os instintos, e a violência não repara suas vítimas. Morrem ricos e morrem pobres, e em torno das residências cavam-se fossos e levantam-se guaritas, ou pesadas grades que encarceram o sono.
Quantos morrem, a cada dia, nesta impiedosa guerra? Por que, de repente, o ódio fechou o sorriso em tantas faces, e cada homem carrega seu pânico dentro do peito?
Ai estão, queimando nas nossas consciências, os meninos da Candelária, as matanças nas penitenciárias, as desovas contínuas, prática hoje no Brasil inteiro. Que fazer?
Temos que combinar várias medidas, a fim de que as ruas sejam de novo caminhos seguros e modernizar o sistema penitenciário.
A violência não pode ser combatida sem firmeza. O Estado tem o dever de exercer a sua força para eliminá-la. Mas não pode fazer da violência legal o instrumento de uma violência institucionalizada, que gera outra violência, num círculo vicioso que não cessará.
Mandei ao Congresso e lutei na Constituinte de 88 para que a Lei Fleury acabasse. Isto é, a lei que permitia ao homicida defender-se solto. É um escárnio que fomenta o crime.
O combate à violência começa pela proteção da infância. Enquanto houver uma criança abandonada no Brasil, haverá sementes de ódio.
O Brasil guarda imensas reservas de cordialidade, de amor ao próximo, de alegria que podem servir à reconquista da paz possível.
Vamos trabalhar a fim de que possamos, nós e nossos filhos, abrir as janelas para os jardins, e franquear a porta a quem quiser cruzar a nossa soleira, em toda a paz que merecemos.
A violência, em última análise, é uma busca da morte. O Brasil não é país destinado a essa procura trágica.
Um fanático fascista gritou certa vez a Unamuno, na Universidade de Salamanca: "Viva a morte!"
O grito do povo brasileiro é outro: "Viva a vida!"

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