São Paulo, sábado, 16 de abril de 1994
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Padre Anchieta e a leptospirose

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Se alguém possui culpa de convivermos com essa doença é o padre Anchieta, por ter fundado São Paulo no fundo de um vale inundado em todos os verões. Aliás, uma das explicações para tal localização é que o santo homem vinha de Santos na direção dos sertões, à procura de tupiniquins, tupinambás e outros nativos para converter e, subitamente, ficou ilhado após um temporal; já que estava ali, em cima de uma colina, aproveitou e implantou a metrópole, assegurando aos futuros habitantes a perpetuação das enchentes. Naturalmente, sucessivos alcaides ajudaram a manter a enfermidade, já que quase todos preocuparam-se mais com obras como viadutos, elevados e outras coisas bem visíveis –que se prestam a grandes rendimentos eleitorais– do que com esgotos ou drenagem de águas. O que está debaixo da terra ninguém vê e não dá voto. Sem dúvida, determinados prefeitos e edis compartilham das responsabilidades com especuladores imobiliários, que ocuparam várzeas de rios e riachos, lugares que a natureza não reservou à ocupação humana, e sim aos cursos de água que precisam de espaço extra quando desabam temporais.
Uma política racional para limitar os estragos da leptospirose implica em obras de saneamento, controle dos alagamentos e combate à população de ratos que, calcula-se, ultrapassa a população humana. Tudo, no entanto, se acontecer, vai ocorrer a longo prazo. Para permitir convívio menos letal entre homem e leptospirose precisamos equipar-nos melhor para um diagnóstico adequado e mais precoce, garantindo assistência médica bem efetiva. Reconhecer a natureza da afecção não requer enorme sofisticação laboratorial; contudo, prover atendimento aos azarados acometidos de formas graves da doença é mais complicado. Vamos cair outra vez no "cabeludo" problema da atenção médica, ou seja, prestação de socorro em emergência. Qualquer lugar civilizado é dotado de mínima ordenação de sistema de pronto-socorro, hierarquizado e regionalizado. A maneira exata de instituir essas coisas nem importa tanto, desde que exista direção lógica e coletiva. O que vemos, no entanto, é um confuso método administrativo, que privilegia a "empurroterapia" e prejudica os que prestam serviços atuantes, sempre sobrecarregados de trabalho. Qualquer moléstia intensa –e leptospirose pode ser bastante séria– acaba enfrentando má acolhida nessas condições.

VICENTE AMATO NETO, 65, médico infectologista, é chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP. Foi secretário da Saúde do Estado de São Paulo (governo Fleury).

JACYR PASTERNAK, 53, médico infectologista, é chefe de gabinete da Superintendência do Hospital das Clínicas e membro do Grupo de Transplante de Medula Óssea do Hospital Albert Einstein.

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