São Paulo, sábado, 16 de abril de 1994
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Brasil cão

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não faltam emoções no Brasil pós-Castor de Andrade. Em Recife, mendigos se alimentam de carne humana catada no lixo de um hospital. Em Itaíci, um bispo de 78 anos declara que não tem a menor idéia de como se usa uma camisinha. Lula garante à CNBB que não abençoa o casamento entre homossexuais. FHC vai amanhã garantir o mesmo.
Banho de água-benta não elege, mas purifica os candidatos. Pior mesmo é o suicídio anunciado da deputada Raquel Cândido. Cão que ladra não morde. Mas há exceções. O advogado dela na Comissão de Justiça fez esmiuçada descrição das avarias causadas pelo estupro que a parlamentar sofreu no tempo da ditadura. Ficamos sabendo que ela sofre de incontinência urinária. Uma cirurgia plástica eliminou parte de sua anatomia. O advogado informou à nação que tal parte era "enorme".
Tudo bem. Ou melhor: tudo mal. A deputada manipulou indevidamente verbas do Orçamento, merece cassação. Merece, também, respeito pelos seus direitos humanos e anatômicos.
Massacrada, ela ameaça suicídio. Imagino o estupor, a convulsão nacional, o pânico se o Betinho ameaçasse coisa equivalente: "Amanhã vou me suicidar por causa da lista do bicho!" O sol não levantaria na manhã seguinte. Deixando pra lá os mendigos que estão comendo carne humana, o bispo de 78 anos tão inocente como uma criança de cinco, a anatomia avantajada da representante do povo de Rondônia, detenho-me, contrito, diante da estupidez humana, a começar pela minha própria estupidez.
Outro dia fui à cidade, começou a chover e comprei um desses guarda-chuvas que os camelôs vendem exatamente quando começa a chover. Não me dei ao trabalho de verificar se havia guarda-chuva dentro da capa de plástico. Duas esquinas adiante fui abrir a preciosidade que entrara na lista dos meus parcos bens: não havia guarda-chuva mas um chumaço de jornal laboriamente amassado na forma aproximada de um guarda-chuva.
Seria o caso de eu próprio ameaçar, ou melhor, de praticar suicídio ali mesmo, na esquina da rua São José com a travessa do Ouvidor. Refleti melhor (ou pior): fica para outra oportunidade.
Nunca se sabe.

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