São Paulo, sábado, 16 de abril de 1994
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A fezinha de cada dia

MIGUEL REALE JÚNIOR

Em recente entrevista no programa "Opinião Nacional", da TV Cultura, o desembargador Odyr Porto, ex-presidente do Tribunal de Justiça e hoje secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, declarou que o jogo do bicho é prática inserida na cultura brasileira, vindo, contudo, a ser altamente nociva pelas nefastas ligações com o tráfico de entorpecentes. Com razão o secretário.
Anteriormente, decisão do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo destacava "que se tornou um costume do povo brasileiro jogar no bicho."
Foi a inclusão do jogo do bicho como contravenção contraproducente, constituindo forte fator criminógeno, ao gerar infrações penais de maior monta, a começar pela corrupção policial na venda de proteção, trocando os agentes da lei o não enquadramento penal por vantagem pecuniária.
Esse concubinato bicheiro-polícia transformou-se depois em conivência no comércio de entorpecentes.
A legalização do jogo do bicho é, de conseguinte, por todos os motivos necessária, desfazendo a postura farisáica dos anos 40, no governo Dutra, mormente depois do Estado promover a Loteria Esportiva, a Loto e a Sena, a ponto de alguns tribunais considerarem que "nos dias atuais a infração perdeu quase toda carga de ilicitude".
Presos são os cambistas, os apontadores e não os apostadores, sendo certo que há uma co-autoria necessária. Por isso, algumas decisões da Justiça frisam: "Ou punem-se todos os partícipes ou bem nenhum."
Se assim é, por que não legalizar?
Ora, abolir a infração contravencional é fácil, difícil é a administração pública substituir a estrutura organizacional dos bicheiros e assumir como cambistas oficiais os milhares de apontadores espalhados nas esquinas e cantos do país, e que só em Recife, por exemplo, somam a cerca de 40 mil pessoas.
Se a Caixa Econômica quiser explorar a Zooteca, por meio das casas lotéricas, com certeza continuará a existir o jogo paralelo, organizado pelos atuais bicheiros, com seus milhares de subempregados, junto aos quais a população habitualmente faz e continuará fazendo as suas fezinhas diárias.
Mas cabe, com rigor, enfrentar a atividade dos bicheiros no que tange ao esquema de poder construído com vista ao tráfico de entorpecentes e ao contrabando de armas, com suas redes internacionais.
O melhor caminho está em reprimir o crime organizado de tráfico e contrabando de armas conexo ao jogo do bicho, e ir fundo na apuração das ligações corruptoras com autoridades de qualquer dos Poderes.
Doutra parte, ao se legalizar o jogo do bicho, resta o problema de sua exploração, difícil ser assumida e controlada pelo Estado. É este um obstáculo operacional a desafiar os técnicos da Caixa Econômica.
Dessa maneira, o jogo do bicho deverá perdurar, e o melhor é que seja legalizado, mesmo diante das dificuldades operacionais apontadas, pois o país, e em especial o Rio de Janeiro, já pagou alto preço pela caracterização desse costume como contravenção.

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