São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––<HD>O Brasil real

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

De costas para o país,as elites se revelaramincapazes de realizarreformas profundas
Muitos ainda devem estar lembrados da frase do general Médici em uma de suas viagens ao Nordeste do Brasil, nos anos 70, quando afirmou que a economia ia bem, mas o povo ia mal. O ditador vira de perto cenas de miséria e, supostamente chocado, acabou por produzir esta pérola do pensamento político.
Os aduladores de sempre, na época, destacaram a "sensibilidade social" do presidente. Os críticos do regime não tinham voz e não puderam explicar a hipocrisia da afirmação do ditador. O povo "ia mal" justamente porque a economia "ia bem".
Vinte anos depois a situação mudou. Para pior. Agora a economia também "vai mal". Imagine o povo.
O que é grave, no entanto, é que esta concepção perversa permanece na cabeça de nossos governantes até hoje. Eles continuam anunciando querer consertar a economia, impondo mais sacrifícios ao povo. A melhoria da situação social acaba ficando para depois, pois como já nos explicou o ministro Delfim Netto, no passado, o bolo precisava crescer para depois ser dividido.
O bolo cresceu, depois murchou, mas nada de divisão. Pelo contrário.
A miséria que eu vi em minhas caravanas pela cidadania e que atualmente estou constatando aqui no Nordeste é bem maior do que aquela existente nos anos 70.
Isto tudo reforçou minha convicção sobre o fracasso de nossas elites para resolver problemas elementares deste país e me chamou a atenção para a falsidade da agenda que nossos conservadores (os de sempre e os recém-chegados) querem impor ao país.
A julgar pelo que aparece em grande parte da imprensa, em discussões de empresários e até mesmo nas universidades, os temas "modernos" para o debate nacional seriam o tamanho do Estado, a abertura para o exterior, a regulamentação excessiva do trabalho etc. Seria cômico se não estivéssemos falando de uma tragédia.
Os grandes temas nacionais, aqueles que têm de estar prioritariamente na agenda de todo político com um mínimo de seriedade e compromisso social, são o desemprego, a fome, os menores que perambulam pelas ruas, as catástrofes de nossa educação e saúde, para só citar os principais pontos da tragédia brasileira.
Esta situação cria graves ameaças para o país. Enfrentamos hoje um risco de desagregação social que pode liquidar nossa democracia política. Com tudo isso é a própria soberania nacional que fica ameaçada.
Nunca desprezei o combate à inflação, até porque os trabalhadores são as principais vítimas dela. Também tenho claro que a crise de nosso modelo de desenvolvimento é profunda. Por esta razão temos apresentado propostas para construir uma alternativa de crescimento que leve em conta o novo quadro mundial, o atraso em que se encontra nosso sistema produtivo, mas também o enorme potencial que possuímos para uma retomada futura.
Mas o combate à inflação não pode trazer mais arrocho, nem pode justificar esta situação vergonhosa de termos um salário mínimo de US$ 63. Não se pode continuar cortando o gasto com educação, saúde e demais políticas sociais. Esta é uma lógica perversa e além de tudo ineficaz.
Uma nova política econômica tem de ser comandada pelas prioridades sociais. São estas que vão definir a forma de combate à inflação e o modelo de retomada do desenvolvimento.
Para que isto ocorra é preciso vontade política, o que não se confunde com voluntarismo. Vontade política, em primeiro lugar, para redistribuir sacrifícios, fazendo com que os poucos privilegiados paguem sua parte, pois até agora eles só se beneficiaram com o desenvolvimento. Em segundo lugar, é preciso capacidade de negociação. O que só acontece quando os que são chamados a negociar com o governo, reconhecem na administração transparência, compromisso com o povo e, sobretudo, um projeto nacional. Estes são os componentes de algo que anda em falta neste país: credibilidade.
De costas para o Brasil, nossas elites se revelaram incapazes de realizar reformas profundas no país.
Hoje existe uma alternativa, baseada nas forças sociais e políticas que nestes 15 últimos anos vêm-se articulando em lutas de resistência e nos grandes movimentos cidadãos que ajudaram a ampliar e a aprofundar a democracia política no Brasil.
É chegada a hora do Brasil real.

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